Ludmila Soeiro apresenta no Malkah a sua cozinha afetiva e descomplicada, mas cheia de bossa

Conheci a Ludmila Soeiro há quase 20 anos. Foi no fim de 2003, quando comecei a escrever minhas primeiras reportagens sobre restaurantes cariocas. Ela tinha acabado de assumir o Zuka, substituindo Felipe Bronze.
De cara, passei a admirá-la. Fazia malabarismos culinários. Além de uma comida que muito me agrada, com boa técnica, criatividade e referências de muitas culturas gastronômicas, gostei da pessoa, sem muitas papas na língua, sincera, original e engraçada. Gosto de pessoas sinceras, originais e divertidas como ela.
De lá para cá, foram incontáveis reencontros, como por exemplo em uma das primeiras saídas para jantar com a filha ainda bebê, com meses de vida, no carrinho que estacionou ao lado da mesa. Nunca me esqueço.
Muitos novos menus se passaram. Vivi dezenas degustações de vinhos harmonizados com os pratos dela. Tive grandes encontros no Zuka. Com amigos ao redor da mesa.
Lá havia um braseiro, que fez com que Ludmila aprimorasse a arte da grelha. E acompanhei sua trajetória profissional, sempre evoluindo, mas mantendo o seu estilo, que é criativo, mas sem exageros. Há identidade clara em seus pratos, entendemos as provocações e inspirações. Sua comida faz sentido. E faz bem. Conforta. É simples, de modo a ser sofisticada. Me faz lembrar de Leonardo da Vinci, e uma frase sua que uso como norte quando falo deste assunto: a simplicidade é o último grau de sofisticação.
Dry Martini, para comprovar que a coquetelaria merece atenção – Foto de Bruno Agostini©
Na gastronomia, essa é a verdade mais pura. Na minha mais singela e humilde opinião.
Pois há dois dias eu visitei o seu novo restaurante, Malkah, que significa rainha em língua persa. Na simpática casa de esquina com três andares que por anos abrigou o saudoso Lorenzo Bistrô ela mantém o seu estilo.
O whisky sour não leva só limão, mas um mix de frutas cítricas, boa sacada – Foto de Bruno Agostini©
Fiz um pequeno tour pelo menu, e foi um final de tarde sublime, regado pelos bons drinques do bar, regido pela maestra Mariana Paixão, bartender que me preparou, de cara, uma espécie de whisky sour, quando pedi para fazer o coquetel que ela mais gosta.
Já havia bebido um dry martini, na chegada, bem preparado por sua equipe.
O steak tartare à moda oriental: não deixe de pedir – Foto de Bruno Agostini©
Quando ele acabou, veio o primeiro prato: um tartare de inspiração asiática, que me deixaria bem feliz, mas não exatamente impressionado, inclusive, nem é o que espero de toda refeição ou prato. O feijão com arroz é suficiente para me deixar feliz. Mas havia um toque de gênio nisso: ela colou uma folha de nori colada em outra de massa de harumaki e fritou. O resultado é uma massa crocante, com uma cor de cada lado, que é um snack tentador. Mas ele foi criado mesmo para acomodar as colheradas do tartare, e quando isso acontece eu vejo a Ludmila ali. Pega o básico, e dá uma gingada com ele, e neste compasso nasce algo novo.
A burrata, com creme de pimentão e macadâmia, foge dos preparos óbvios – Foto de Bruno Agostini©
Isso se repete na burrata, que foge dos preparos deliciosos, mas repetitivos, que vemos por aí, com azeite, rúcula e tomate, seco ou não. Ludmila dá crocância e sabores amendoados e tostados com macadâmias, frescor com o azeite de manjericão, perfume com a páprica, e profundidade de sabor com um creme de pimentões, que faz diferença, e remete a um gazpacho, ativando as memórias gustativas. Coloque tudo no pão de fermentação natural, e use-o para limpar o prato, por favor.
Repara no ponto do pato: interior rosado, é fácil, mas casquinha como essa é rara – Foto de Bruno Agostini©
O pato com laranja revela outra característica da chef, que já citei. A habilidade para grelhar carnes – e pescados. Pois ela pegou um peito de pato e extraiu o máximo dele. Conseguiu uma casquinha crocante na pele de gordura que não se vê por aí. (Na verdade, ela estava à mesa, quem fez isso foi alguém de sua cozinha, o que dá no mesmo). O sabor da fruta, que surge também com a casquinha cristalizada, combinado com o pato é sabidamente complementar e harmonioso. A jogada que me enlaçou foi a guarnição. Ela salteou uns pedacinhos de bacon, e depois juntos uns cubinhos de pão de miga. Uma farofa fofa.
Aliás, farofa fofa é uma espécie de aliteração . Farofa fofa por macia, farofa fofa por agradável. Farofa fofa por bonita. Tem textura de nuvem. Claro que é uma metáfora, nunca comi tal coisa. Poderia citar outras figuras de linguagem para classificar esse prato. Hipérbole, pois é exageradamente bom.
Angus perfeitamente grelhado, purê trufado com gema, vinegrete e farofinha: pura harmonia – Foto de Bruno Agostini©
Bem, não estamos numa classe de português, mas num restaurante de classe.
Porque tem que ter talento para grelhar tão corretamente assim este chorizo de angus, que não fica nada a dever às melhores casas de carne, o que é bem raro de se ver em restaurantes que não são da categoria. O conforto do prato vem do ponto do bife, macio, rosado por dentro, e perfeitamente envolvido pelo senhor Maillard na superfície. E de seus acessórios: um purê trufado com gema, que misturamos à mesa (olha lá no meu Instagram @brunoagostinifoto), um vinagrete que corta a gordura e traz frescor ao conjunto, e uma farofinha, para trazer uma textura que nós, brasileiros, não dispensamos, ainda mais em se tratando de um grelhado do tipo.
Peça o drinque de café ao perfume de noz-moscada para harmonizar com a torta de chocolate – Foto de Bruno Agostini©
Encerramos com uma rodada de sobremesas. Mas, antes do trio que tinha por uma torta de chocolate belga vistosa chegar, eu estava dando umas bicadas num coquetel de café com cachaça, perfumado com (muita) noz-moscada. Quando vi o chocolate, logo pensei: vai ficar excelente com este drinque. E, de fato, ficou, recomendo que provem.
Malkah é rainha em persa. Ludmila é uma princesa bíblica, cujo nome significa “amada pelo povo”. Mas, no Malkah carioca, quem reina é Ludmila, amada pelo povo que aprecia a boa mesa. Há 20 anos.
Direto do Túnel do Tempo.
Fim.
Semana que vem eu já volto para continuar essa história de duas décadas.
SERVIÇO
Malkah – Rua Visconde de Carandaí 2, Jardim Botânico. Tel.: 3580-3386. Instagram: @malkahrestaurante
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *