Vinho da Semana: Justinos’s Madeira Boal 10 Anos (e a ilha portuguesa dos vinhos imortais)

A glória engarrafada – Foto de Bruno Agostini©

 

Certa vez o amigo Paulo Nicolay me disse uma frase definitiva e que levo para o resto da vida de enófilo: “Um Porto Vintage de grande safra é o máximo que um vinho pode ser. Não há nada mais grandioso que isso.”

 

Isso é muita verdade, e o Quinta do Noval Nacional 1963 é uma prova disso. Há outras. Vamos citar as mais jovens safras? Taylor’s Quinta de Vargellas Vintage 2005 é outro bom exemplo. Há dezenas deles.  (Aliás, aqui tem um ótimo guias de excelentes Portos Vintages em safras recentes: https://www.winemag.com/2019/11/29/10-best-port-wines-buying-guide/)

Eu tenderia a concordar 100% com o Nicola, dos grandes especialistas em vinhos no Brasil. Porém, existe a Ilha da Madeira, e seus vinhos imortais, exuberantes, únicos e  profundos. Na verdade, o que quero dizer é o seguinte: provem o Justino’s Madeira Boal 10 Anos!

NÃO HÁ VINHO NO MUNDO TÃO INCRÍVEL A R$ 229,90 (preço do mercado brasileiro, neste link:na Europa é um troco: acho que já paguei uns 10 euros numa garrafa em Portugal). Preciso usar caixa alta, sim, preciso gritar para o mundo isso.

Mesmos os Madeiras mais simples e ordinários são vinhos acima da média, marcantes, potentes. É impressionante.

A glória engarrafada – Foto de Bruno Agostini©

Outra preciosidade com preço possível é o Malmsey (ou Malvasia), igualmente da Justino’s: meia garrafa (375 ml) sai por R$ 156,70 (mesmo preço da Verdelho, respectivamente neste link aqui e neste outro). Com tanto vinho medíocre custando R$ 300, R$ 400 e até mais do que isso, ter um desses  Madeiras extraordinários e evoluídos é uma sorte. Provem, com queijos, charutos, algumas sobremesas e – melhor que tudo – sem mais nada, só contemplando o vinho, vendo a sua delicadeza e potência, sua complexidade, sua acidez em contraste com a doçura, o álcool (na casa dos 19%) que equilibra toda essa grandeza. Por R$ 229,90…

Lembro de dois dos vinhos mais antigos que provei, do começo do século 19. Talvez os melhores vinhos de toda uma vida. Aromas de curry, uma cor e uma complexidade inacreditáveis… Não consigo descrever : eram o d’Oliveiras Verdelho 1850 e o Barbeito Malvasia 1834. Uma emoção.  (À época, 2013, eu escrevi um texto, que replico no final deste, sobre uma prova de sonhos, dos três grandes vinhos fortificados portugueses: Madeira, Porto e Moscatel de Setúbal).

Há pouco tempo, na Palace (para ler um post sobre a melhor maneira de aproveitar a melhor churrascaria rodízio do Rio, hoje, clique aqui) eu mais uma vez provei o Boal 10 anos da Justino’s. Que felicidade. Aquela macia doçura, a acidez eletrizante, os sabores profundos que passeiam por mel, amêndoas, cacau… As notas ligeiramente defumadas do estágio em madeira… Uma elegância, uma finesse… Uso reticências. Sobre coisas grandes é difícil escrever.

Vou resumir: apenas prove.

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“ESTE É UM VINHO IMORTAL. NÃO SE PODE BEBER NADA DEPOIS DELE” – RUI FALCÃO

Em 1834, Dom Pedro I morreu. E o pintor Edgar Degas nasceu. Na Espanha, a Inquisição acabava e, a Inglaterra abolia a escravatura em todo o Império Britânico. Neste mesmo ano, Charles Darwin  estava em plena expedição a bordo do navio HMS Beagle. Do ponto de vista histórico, não foi um ano de fato marcantes.

Mas, para mim, foi um ano importante. Porque neste mesmo 1834 era produzido um vinho na remota Ilha da Madeira, na verdade um arquipélago português no meio do Atlântico. Um vinho imortal, que resistiu ao tempo, a chegou a 2013 com vigor juvenil, esbanjando elegância e frescor, exuberante com o caráter que o tempo lhe emprestou. Um raro exemplar do Madeira Barbeito Malvasia 1834 foi o vinho mais antigo de uma degustação especialíssima, que aconteceu na última quinta-feira, conduzida pelo jornalista português Rui Falcão, durante o evento Essência do Vinho. Durante a prova, adequadamente batizada de “Vinhos Portugueses de Sonho – Porto, Madeira e Setúbal”, foram degustados, ainda, outros cinco vinhos: mais um Madeira, o d’Oliveiras Verdelho 1850; dois portos, Andresen Colheita 1910 e  Niepoort VV (um lote quase que inteiramente do ano de  1863!); além de dois exemplares do Moscatel de Setúbal, JMF 1955  e JMF Trilogia (corte de vinhos das safras de 1900, 1934 e 1965).

– É indiscutível, com todo o respeito ao Douro, ao Alentejo e a outras regiões que fazem grandes vinhos, mas os grandes vinhos de Portugal são os fortificados. Os melhores exemplares do Moscatel de Setúbal estão no mesmo patamar do Porto e do Madeira – diz Rui Falcão. – Vamos servir os Madeiras por último. Este é um vinho imortal. Não se pode beber nada depois dele.

Foi uma degustação inesquecível, que deixou comovidos os participantes. Impressionava a vitalidade de cada vinho, a acidez marcante, o frescor, a elegância e a exuberância aromática, com admirável evolução e riqueza.

Ao iniciar a prova, Rui determinou, para consentimento geral: “Estão proibidos de cuspir esses vinhos”, disse, a respeito do hábito que se tem, em degustações técnicas de se provar o vinho, bochechar, para então cuspir em um balde.

Moscatel de Setúbal – Os vinhos produzidos com esta casta nos arredores de Lisboa estão entre os grandes do mundo, sem dúvida. A degustação começou com o Trilogia, produzido pela José Maria da Fonseca com uma mescla das safras de 1910 (15%), 1934 (15%) e 1965 (70%). “Foram três dos melhores anos da História deste vinho”, conta Rui Falcão. Um lindo vinho, com coloração acobreada, meio marrom. No nariz, tem mel, café, casca de laranja cristalizada, figos secos, cravo, canela, com uma impressionante riqueza aromática. Na boca, acidez e frescor formidáveis.  Em seguida, foi servido o JMF 1955, considerada a melhor safra do Moscatel de Setúbal. Como duvidar? O vinho, opulento e ao mesmo tempo delicado, com coloração levemente esverdeada nas bordas, e que desfila uma seleção de aromas que vai do mel, da marmelada e dos figos em conserva às notas defumadas e tostadas, com canela, café, pimenta-do-reino e um toque mentolado e de eucalipto, com leve amargor no final.  Na boca, é gordo, volumoso e sedutor. Concentração, força, intensidade, complexidade. “Cuidado para não desmaiarem de emoção”, advertiu Rui Falcão. “Como pode uma uva como a Moscatel produzir vinhos tão ruins e outros tão bons?”, perguntou o crítico português.

Porto – Primeiro foi servido o Andersen 1910, um Tawny maravilhoso, uma joia deste pequeno produtor familiar. Um vinho levemente picante, intenso. Elegância, finesse, com acidez marcante, e muita sutileza.No nariz, tem notas de torrefação, amêndoas e avelãs, com mel, geleia de laranja, folha de louro seca, açafrão. Um dos poucos desses vinhos disponíveis para venda, poderá ser encontrado em breve na Lusovini (www.lusovini.com), por US$ 6.500 (também vão trazer o 1900, mas ainda sem preço).  O próximo vinho foi o Niepoort VV (que significa vinhos velhos, quase que inteiramente feito com a safra de 1863). Uma maravilha. Dele, foram feitas apenas 999 garrafas. Com evidente toque oxidação, mantém frescor, com notas mentoladas e florais. Aos pucos, vai se exibindo: aromas de café, chocolate, curry, açafrão, limão siciliano. Complexo, exuberante, um lindo vinho.

Madeira – Em uma degustação épica como esta, eleger o melhor vinho, ou os melhores, pode soar como heresia. Mesmo correndo o risco de estar pecando contra os deuses da enologia, aponto os dois Madeiras como os grandes soberanos desta prova histórica. “O Madeira é o único vinho imortal. Ele é tão maltratado quando é elaborado, que depois disto resiste a tudo.”, anuncia Rui Falcão. Primeiro foi servido o d’Oliveiras Verdelho 1850.  Com impressionante acidez, apresentava rara paleta aromática, com frutas compotadas, como casquinha de laranja cristalizada, figos e frutos secos, amêndoas, curry, açafrão… O final, longo, imortal como ele. Depois, quando o Madeira Barbeito Malvasia 1834, fiquei assombrado. Monumental.  Depois de prová-lo, voltei a todas as demais taças. O Barbeito atropelou todo mundo. O mesmo vinho que momentos antes se mostrava exuberante agora estava intimidado diante a opulência elegante, diante da potência, o caráter único e extraordinário deste vinho indescritível, que reunia praticamente tudo o que tinham apresentado os cinco vinhos anteriores. Frutas compotadas e secas, amêndoas, aspectos cítricos e macia oxidação, acidez fabulosa, equilíbrio, aromas de mal, especiarias, cacau, café, curry… Um final de boca interminável, marcante, saboroso, intenso. Uma loucura.

 

 

 

 

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