Cozinha em Revista: uma tarde no Chez Wong, a cebichería em Lima que só usa linguado

O chef Javier Wong e sua wok, com 30 anos de uso – Foto de Bruno Agostini®

Tínhamos uma reserva para o restaurante Chez Wong na terça, às 14h. Mas, logo pela manhã, nos ligaram cancelando o almoço:

– Porque não tem peixe – disseram.

Até pareceu exagero, afinal a casa de Javier Wong, em um bairro afastado e nada turístico de Lima, trabalha apenas com linguado: como assim, não tem linguado¿

Ter, até tinha, mas o chef de origem cantonesa rejeitou-os, porque não estavam frescos, nem no seu padrão de tamanho, foi o que nos explicaram.

Muito justo, muito digno, e até louvável. Por isso, ele é a referência que é, porque se mostra intransigente quando o assunto é a qualidade do peixe que ser aos seus clientes: só aceita os grandes, e que tenham sido pescados de madrugada.

Pois, então, passamos nossa reserva para quarta, às 14h.

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O chef limpa e corta o linguado no salão, como se fosse um show (e é) – Foto de Bruno Agostini®

Chegamos um pouco antes do horário, e nos deixaram esperar no salão modesto, com paredes repletas de diplomas, reportagens, condecorações e fotos, entre elas uma que mostra o chef com seus colegas, Éric Ripert, do três-estrelas Le Bernardin, em Nova York, e o saudoso Anthony Bourdain, que virou celebridade televisiva e escritor, quando lançou o seu livro “Sem Reservas”, em 2001 – leitura fundamental para qualquer um que se interesse por comida.

Exatamente às 12h56 ele entra no salão, e saúda dois conhecidos, que estavam na mesa junto à porta que o leva de sua casa – no andar de cima – até o restaurante, no térreo. Chez, no caso dele, de fato é a sua residência.

Ele tem um garçom e um assistente, que trabalha com ele de forma tão coordenada que parece coreografia de balé. Eles nem precisam trocar palavras.

O chef tem tempero simples: limão, sal e cebola cortada na hora – Foto de Bruno Agostini®

O primeiro prato é sempre um ceviche. Na wok, que fica na cozinha miúda, do lado dos banheiros, ele faz a segunda receita:

– Qual é o prato do dia hoje? – perguntou o chef peruano Marco Espinoza, quem me convidou para essa viagem memorável, junto do fotógrafo Tomás Rangel – vem coisa boa aí, adianto a vocês!

O cozinheiro olhou para o chef, levantou os dois ombros e espalmou as mãos, fazendo aquela cara e trejeito de quem não sabe:

– Ele decide – disse.

Sabíamos que o segundo prato muda sempre, mas não que ele só decide na hora o que vai preparar.

Naquela coreografia culinária já citada, o chef recebe um linguado de bom tamanho. Com agilidade e destreza, abre o peixe, e o corta, em cubos, com a plateia, que era de dez pessoas naquela tarde abafada, muito atenta aos movimentos. É mesmo um show. Todos filam e fotografam – inclusive eu, é claro.

Quando me levantei novamente para fazer mais um filmete, ele me olhou, e disse, misturando ironia e bom humor:

– Você gosta de filmar, hein!

– É que sou jornalista – respondi, percebendo um certo sorriso de satisfação, mesmo que ele estivesse com máscara cirúrgica, dessas heranças da Covid.

Ele tempera o peixe: limão, sal e cebola roxa. E só.

A marinada é de menos de cinco minutos, e logo começa a servir, com potinho de pimenta – tão forte quanto essencial para realçar os sabores do ceviche, tão puro como se fazia antigamente, sem adereços como camote (batata-doce laranja), milho branco, coentro e outras coisas, que nos habituamos a ver nos preparos desse prato (aliás, vai merecer outro post, as quatro gerações do ceviche, teoria muito bem apresentada por um colega dele, Lizandro, que comenda a cozinha do La Mar, em Miraflores, do célebre Gastón Acurio, tão importante para o Peru que não se tornou presidente do país há alguns anos porque não quis: as pesquisas lhe davam ampla vantagem). Em Breve conto essa história.

Pois é ceviche tão puro é de uma profundidade incrível. O peixe muda de textura com o leve cozimento a frio causado pelo limão, primo do taiti, verde também, mas menor e de sabor mais delicado no sabor. A cebola roxa dá uma certa textura crocante. E a pimenta “pica” de verdade, como se diz nos países de l[íngua hispânica: se lá for, muito cuidado com ela!

Tudo começava a fazer sentido. Para apresentar o linguado daquela forma ele preciso de um peixe realmente ultrafresco – o que verificamos ao ver s sua aparência, com os olhos brilhantes, assim como as suas escamas.

– Só aceito de manhã os que foram pescados de madrugada – reiterou depois aquilo que já sabíamos.

Ele usou dois linguados no preparo do ceviche para os dez clientes daquela tarde: nós, numa mesa de quatro, e outras três, com duas pessoas cada.

Ficamos elogiando o prato, o jogo de texturas e o equilíbrio de sabores em receita tão simples, aparentemente:

– A simplicidade é o mais alto grau de sofisticação – disse, dando lição de vida, há 500 anos, Leonardo da Vinci, coberto de razão, pura sabedoria.

Então, ele recebe de seu assistente os vegetais, e começa a cortá-los, em diferentes formatos. E, logo em seguida, o peixe, desta vez laminado, em formato diferente do ceviche. (Sendo honesto, não estou certo qual das duas coisas ele fez primeiro). Todos fazem mais fotos e vídeos. É inevitável.

O fogareiro parece uma turbina de avião – Foto de Bruno Agostini®

De novo, chama a atenção a sincronia de movimentos, sem que precisem trocar palavras, entre ele e seu assistente.

Então, ele vai para a cozinha, e acende o seu fogão de uma boca só. O barulho do fogo é alto, e lembra até uma turbina de avião, ou algo do tipo.

Esquenta a panela e, com uma concha, vai acrescentando os ingredientes. As labaredas lambem a wok, e chamam a atenção, incluindo a sua calma diante de chama e calor tão intensos.

Mais fotos e vídeos. Fogo dá boas imagens. Os aromas começam a tomar conta do ambiente.

Ele acrescenta uma long neck de cerveja. Faz mais alguns movimentos com a panela. Até que a tampa. Todo o processo não leva mais do que dois minutos.

Novamente sem precisar pedir, seu assistente lhe traz as travessas, e vai servindo os clientes. Em grupos duas pessoas por travessa.

Os sabores são incríveis, e o mesmo posso dizer do jogo de textura.

O salteado de linguado com legumes e cogumelos – Foto de Bruno Agostini®

Há cogumelos e pimentões, vermelhos e amarelos, além de miniervilhas tortas, fácil de identificar, assim como as abobrinhas. O caldo denso e perfumado, traz sabores agridoces, e levemente picantes.

– E isso aqui, o que é¿ – pergunta alguém.

Eu confesso que fiquei confuso, e chutei um pêssego.

– É melão – disse o chef Espinoza, acertando na mosca, com seu paladar apurado de quem tem anos e anos de estrada na profissão.

Que maravilha! – repetíamos, destacando as notas defumadas que o intenso calor da wok entrega ao prato. Botei mais pimenta, que ainda repousava na mesa. Cuidado com ela, repito.

Foi delirante. Delicioso. Deslumbrante.

– É, ele não tem essa fama toda à toa – dizíamos, em uníssono, os quatro.

Palavrões como caralho e puta que o pariu eram as únicas expressões que usávamos para definir.

Pedimos para conversar um pouco com o chef, que logo se ausentou do salão.

– Sim, ele vem falar com vocês – disse o garçom.

– Ahhhh, que bom, vibrou este ex-repórter – que eternamente será um perguntador e jornalista, ainda que hoje minha praia seja outra, para minha própria alegria (O Globo é uma fábrica de traumatizar jornalista, isso é uma grande verdade).

Enquanto conversámos, fomos interrompidos pela chegada de mais um cliente:

 

– Tengo reserva para las 14h – disse ele, num reconhecível portunhol de brasileiro.

O garçom olhou para o chef:

– Tem mais uma reserva?

Não, disse ele, seguro da resposta.

O sujeito insistiu:

– Como no? Fiz la reservación por ele hotel. El hotel chamó vocês ontem, e disseram que no tenía pescado. E passaram para hoje.

Checam o caderninho de reservas:

– Pero, llamamos a todos, decindo para cancelar, que havia poco pescado. Llamamos ele hotel – insistiu o garçom.

– Porra, não me avisaram.

A conversa se estendeu, e foi mais ou menos assim. Deu pena do sujeito, do interior de São Paulo, que rejeitou o convite para voltar no dia seguinte:

– Voy para Machu Michu – respondeu.

Saiu indignado, mas percebeu que o erro foi do hotel. Imagino a merda que isso deu.

Ele foi embora, e então eu perguntei ao chef:

– Porque cancelou outras reservas hoje?

O chef e o vegetal, que fazemos a bucha – Foto de Bruno Agostini®

– Porque só consegui três linguados frescos e do tamanho que preciso. Com o que tinha, só poderia receber dez pessoas – disse ele.

Eu quase o aplaudi. E agradeci a sorte. Se tivesse mais um peixe, ele voltaria para a cozinha.

Mas, com essa intervenção divina, quase bíblica, o meu particular milagre dos (poucos) peixes tive a oportunidade de fazer uma das melhores entrevistas de minha vida, que se estendeu por mais de uma hora. Mais que uma entrevista, foi uma lição de vida. Mas, essa conversa, fica para outro dia – ou jamais publicarei. Vou decidir com calma. Algumas coisas ele pediu para que não fossem publicadas.

Sei que – depois da última quarta-feira – o chef Javier Wong é das pessoas que eu mais admiro no mundo. Não pela comida que prepara apenas. Mas, pela pessoa que é, pela honestidade que tem, e pela sabedoria que trasborda de suas falas. Mansas, mas profundas.

Foto com o chef (ao fundo Ripert e Bordain fizeram o mesmo) – Foto de Bruno Agostini®

No final, fizemos foto. Ele me chamou de “Hermano”. Confesso que quase chorei descende as escadas. Que lição de vida. Que me fez refletir sobre muitas coisas, inclusive o jornalismo. Sobretudo o gastronômico, que anda tão maltratado por aqui.

Muchas gracias, maestro. Fué un tremendo placer”.

Nos vemos em Nova York para almoçar no Bernardin. Se Deus quiser!

SERVIÇO
Chez Wong: Enrique León García 114, Lima. Reservas são necessárias. Tel.: +51 (1) 470-6217.

 

2 commentários
  1. Olá, como vc fez a reserva? Estou tentando ligar no número de telefone que aparece na descrição da bio dele no Instagram mas a ligação não completa.
    Obrigado

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