Quando comecei a me embrenhar pelo mundo da cerveja, as belgas foram as primeiras a despertar meu interesse. E, assim, eu aprendi uma importante lição, que hoje me faz dividir as atenções entre o vinho e a cerveja: pelo preço de um vinho ordinário que é incapaz de me oferecer uma gota sequer de prazer eu posso comprar uma garrafa de uma das melhores cervejas do mundo. Um bom exemplo dessa tese é a Orval, uma das primeiras a me chamar a atenção para a qualidade, a complexidade, a capacidade gastronômica e o tanto de histórias interessantes que essa bebida carrega.
A Orval tem tudo isso. Hoje, pode ser encontrada por menos de R$ 30 (R$ 28,90 no site do Clube Extra). É uma das melhores cervejas do mundo, sem dúvidas. Como se vê pela foto, tem uma excelente carbonatação, consistente, dessas que formam grosso “bigode”, valorizada por seu lindo copo – que falta em minha coleção. Também se nota pela foto sua linda coloração âmbar, com reflexos dourados e turbidez. No aroma percebemos a carga grande de lúpulo, uma das marcas dessa cerveja, com 6,2% de álcool, aromas e sabores condimentados. Integrante da nobre categoria das trapistas, a Orval tem sabor potente e inesquecível, complexo e profundo – em grande parte atribuído ao Brettanomyces, assim como à lupulagem pesada, que inclui “dry hopping”. Apesar da intensidade de aroma e sabor, maltado, condimentado e marcante, é uma cerveja que desce fácil, fácil, o que a torna um perigo. Gosto com pratos picantes e queijos intensos e salgados, com gorgonzola. Sugiro provar com pratos de porco à moda chinesa, mas também com arroz de pato à moda portuguesa, e (nunca provei, mas estou certo que combina) com um feijão tropeiro caprichado, regado a pimenta.
Já tratamos da qualidade, da complexidade e da capacidade gastronômica. Faltava, para atestar a grandeza da Orval, contar um pouco de sua História. A Brasserie d’Orval é produzida na Abbaye Notre-Dame d’Orval, na região de Gaume, Bélgica. Há documentos antigos, que remetes aos primeiros dessa instituição ao século XI. A abadia passou por incêndios e foi destruída. Só no século passado ela foi reconstruída, e a produção de cervejas serviu para esse renascimento (os trapistas são monges trabalhadores, e fazem alguns produtos, como cervejas e queijos, para o seu próprio sustento e ações de caridade, daí vem a tradição dessas cervejas monumentais, que inclui, entre outras, La Trappe, Westmalle, Chimay e Westvleteren, entre outras poucas e boas, totalizando 11).
Não falta bem uma lenda a envolver essa cerveja. O símbolo da marca, uma truta carregando uma aliança, é porque uma viúva, Mathilda da Toscana (a relação com a Itália forte, essa abadia teria sido fundada por monges saídos de regiões que hoje formam a Itália), teria deixado seu anel cair em uma fonte. Um tempo depois, surge o peixe, trazendo na boca a aliança. Quem me contou essa história foi o garçom que me atendeu na tarde em que tirei essa foto, em um excelente bar de cervejas no centro histórico de Alba, no Piemonte – porque mesmo na terra das trufas, do Barolo e do Barbaresco, eu já não abro mais mão de uma boa cerveja.
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Leia mais sobre cervejas, cervejarias e afins na coluna “Cerveja de Bandeja“, no ar às quartas-feiras – ou em edições extraordinárias.