#TBT: Um flâneur gourmet em Paris*

Piquenique às margens do rio Sena, na Île Saint-Louis – Foto de Bruno Agostini©

Vivo para comer, sempre viajando atrás de aromas e sabores. E nenhum lugar pode ser melhor que Paris para exercer essa paixão. O problema é escolher aonde ir. São tantos os mercados e as feiras de rua, os grandes magazines e as lojas especializadas, as delicatessens e as queijarias, que fica difícil conciliar todas as vontades. A vantagem é que, para onde se vá, sempre haverá uma feira perfumada e colorida, uma loja repleta de gostosuras, uma enoteca cheia de vinhos que nunca ouvimos falar… O flâneur gourmet pode vagar sem rumo por qualquer das duas margens do Rio Sena que será muito feliz, porque o caminho será invariavelmente repleto de delícias. Passeio que fica ainda mais saboroso no verão, quando as ruas estão mais animadas e as barracas de frutas e legumes, mais coloridas.

A Fauchon é um desses endereços essenciais: cuidado com a carteira – Foto de Bruno Agostini

Neste roteiro com os melhores mercados e lojas de comida da capital francesa, a Torre Eiffel não passa de referência geográfica. E os museus não são mais que belos edifícios para serem vistos de fora. Meu Louvre é a Grande Epicerie e suas obras de arte culinárias: o foie gras, as trufas, os chocolates… O D’Orsay é a impressionista, quer dizer, a impressionante Rue Mouffetard, uma via cercada de lojas de comida por todos os lados. Meu Arco do Triunfo é atravessar as portas da mais famosa loja de departamentos da França em direção ao setor chamado Lafayette Gourmet, uma perdição. Minhas Notre-Dames são a Fauchon e a Hédiard, na Place de la Madeleine, catedrais do sabor.

Os tradicionais barquinhos do Jardim de Luxemburgo – Foto de Bruno Agostini©

A Ópera Garnier é Pierre Hermé, que transforma bolos e macarons em arte cênica e gustativa. A maioria dos pontos turísticos de Paris é mero acessório neste roteiro, mas muito úteis são os gramados sem fim das Tulherias, o Jardim de Luxemburgo, o Campo de Marte e as duas margens do Sena. Esses cumprem a sua função original de lugar para descanso. São perfeitos para estender a toalhinha e se sentar para fazer um piquenique com itens comprados nas feiras, mercados e lojas desse tour gourmet.

Se eu tiver que escolher apenas um lugar desses, entre feirantes, mercados e outras lojas de alimentos: seria essa – Foto de Bruno Agostini©

Basta sair caminhando pela manhã por qualquer bairro de Paris que não vai demorar a aparecer um aglomerado de feirantes exibindo suas mercadorias coloridas de espantosa variedade. É o melhor programa a se fazer logo depois de acordar, pois as feiras costumam terminar em torno das 13h (só não tente isso às segundas-feiras, quando quase nenhuma funciona). Os moradores da cidade vão à feira quase diariamente, sempre carregando uma bolsa de pano ou de palha para acomodar as compras.

Lindos aspargos e tomatinhos: destaque nos menus de primavera – Foto de Bruno Agostini©

Em Les Halles, no centro da cidade, a Rue Montorgueil tem antiga tradição em acolher feiras. Há séculos os parisienses vão até ali para comprar comida e a feira funciona de terça-feira a domingo. É um dos melhores lugares para se encontrar queijos (visite a La Fermette), e as ruas adjacentes apresentam uma grande variedade de lojas de produtos gastronômicos: há peixarias, quitandas e casas especializadas em acessórios de cozinha (fica perto dali a famosa E. Dehillerin).

Caranguejos e vieiras na rue Mouffetard – Foto de Bruno Agostini©

Atravessando o Rio Sena, a margem esquerda guarda outra rua emblemática para os que visitam Paris com interesse gastronômico (e quem não visita?). As lojas e bancas da Rue Mouffetard, que começa ali, no encontro do Quartier Latin com o Jardin des Plantes e vai descendo as encostas parisienses, também funcionam de terça-feira a domingo. Esta ladeira da Rive Gauche é uma perdição. A rua é como uma comprida ilha de sabores, um caminho de paralelepípedo cercado de lojas de comida, bares e restaurantes por todos os lados.

Uma ladeira inteira tomadas por lojas e barracas deliciosas: isso é Mouffetard – Foto de Bruno Agostini©

As lojas tomam as calçadas da Mouffetard com os seus produtos frescos, muitas delas exibindo peixes, aves e carnes de animais de vários tamanhos, de coelho a javali.

Os animais são apresentados com parte dos pelos e das penas – Foto de Bruno Agostini©

Para nós, brasileiros, acostumados a ver as aves sempre depenadas e sem cabeça, pode causar certo estranhamento observar as barracas: patos, codornas e perdizes são apresentados inteiros, com as penas do pescoço para cima, porque assim o comprador identifica a espécie. Vez ou outra, um protesto de ambientalistas leva faixas com fotos de maus-tratos aos bichos. Na minha visita, os defensores dos coelhos batiam ponto ao lado de uma loja que vendia esses adoráveis animais prontinhos para ir para a panela.

Parece que o melhor de todos os produtos gastronômicos da França pode ser encontrado ali: há flor de sal de Guérande, foie gras do Périgord, frango de Bresse, peixes da Normandia, embutidos da Alsácia… Com o tempo, a Mouffetard deixou de ser frequentada apenas pelos franceses e virou ponto turístico. Como se sabe, se há turista, há artistas de rua. Assim, em cada esquina você encontra um músico cantarolando. Vi um sujeito com cara de latino tocando baladinhas românticas ao violão, uma dupla entoando clássicos do blues com algum talento na gaita e na guitarra e até uma moça que tentava, sem muito sucesso, imitar Edith Piaf.

A TV de cachorro, com batatinhas assadas na gordura que cai – Foto de Bruno Agostini©

Outro clássico da Mouffetard são os fornos, tipo televisão de cachorro, assando bonitos frangos, que perfumam a rua com o aroma de seus temperos. Uma boa sacada dos franceses é deixar na parte debaixo do forno, recebendo o caldo que escorre das aves, umas batatinhas, que vão cozinhando lentamente naquele molho aromático e gorduroso.

A Mouffetard também tem a sua feirinha. Na extremidade da rua, no fim da ladeira, há barracas que vendem vistosas frutas, legumes e verduras. Não deixe de descer até lá.

 

Rue de Buci, assim como a Mouffetard, outra via imperdível – Foto de Bruno Agostini©

Outro emblema das compras gastronômicas nas ruas da Rive Gauche é a feira da Rue de Buci, uma pequena via curva que nasce no Boulevard Saint-Germain. Pela manhã as barracas vendem frutas, legumes e verduras das melhores procedências. Quem perder a hora não precisa se preocupar, porque não faltam boas lojas de produtos gastronômicos no pedaço, com destaque para as padarias e lojas de doces e bolos.

O agitado mercado da Boulevard Raspail – Foto de Bruno Agostini

Bem perto dali, a Place Maubert recebe ótimos produtos às terças-feiras, quintas e sábados, quando é montada uma tradicional feira. A margem esquerda é cheia de outras boas feiras. Uma das melhores, sem dúvida a mais charmosa, acontece às terças-feiras, sextas e domingos no Boulevard Raspail, pertinho do Hotel Lutetia, numa das áreas mais chiques da cidade. É lá que muitos franceses (e estrangeiros) famosos fazem compras para o almoço de domingo, quando são vendidos produtos orgânicos. Chama a atenção a elegância nas roupas de ir à feira.

Peixes curados na Richard-Lenoir – Foto de Bruno Agostini©

Voltando para a margem direita, nos arredores da Gare de Lyon, na região da Bastilha, o Marché d’Aligre é frequentado principalmente pelas comunidades árabe e africana. É um dos mercados mais animados, baratos e coloridos de Paris, lugar certeiro para se encontrar, sempre frescos, muitos ingredientes diferentes. Ao lado funciona o Beauveau St-Antoine, um mercado coberto mais voltado aos produtos em conserva, também imperdível. Nos fins de semana, bater perna na feira e depois ir para algum dos bares e restaurantes das cercanias é um programa cada vez mais comum.

Imigrantes africanos servem comidas típicas de seus países na Richard-Lenoir – Foto de Bruno Agostini©

Não muito longe dali, na Place de la Bastille, fica a feira da Richard-Lenoir. Há venda de produtos orgânicos e barracas de imigrantes do norte da África e do Oriente Médio, numa das melhores seleções da cidade. Outras duas feiras de caráter bem particular, ainda na margem direita, estão um pouco afastadas das áreas mais turísticas. No Marché Belleville-Ménilmontant, no 19ème arrondissement, todos os imigrantes se encontram, enquanto o Marché Batignolles, no 17ème arrondissement, é bom para comprar produtos orgânicos.

 

Vinhos de família, raros, orgânicos

Em quase todas as feiras de rua parisienses é comum haver pelo menos uma barraca vendendo vinho. Quase sempre é um pequeno produtor que vive não muito longe de Paris e prefere comercializar pessoalmente grande parte de sua pequena produção nos mercados da capital. Não espere vinhos excepcionais, geralmente são simples, mas honestos e com preços compatíveis. É uma boa oportunidade de conversar com alguém apaixonado pelo seu próprio trabalho, disposto a trocar receitas e ideias sobre a bebida, os pratos que vão bem com ela, e etc.

Mas não é todo vendedor de vinhos de feira que carrega esse espírito familiar, quase amador. Na famosa feira da Rue Richard-Lenoir, na Bastille, às quintas-feiras e domingos, uma das barracas mais conhecidas é a de Eduard Mace, que vende rótulos raros, de safras especiais. Nesta mesma rua, um pouco mais para cima, já quase na Place de la République, o Marché de Popincourt, entre as ruas Oberkampfand e Jean-Pierre Timbaud, funciona às terças e sextas-feiras também com boa oferta de vinhos. Na outra margem do Rio Sena, aos domingos, quando a feira do Boulevard Raspail se dedica apenas a produtos orgânicos e biodinâmicos, também é possível encontrar ali alguns rótulos de vinho que seguem essa linha.

A loja é pioneira em vinhos naturais – Foto de Bruno Agostini©

Cremerie: pioneira em vinhos “biô”

Produtos orgânicos e biológicos estão na moda. No mundo do vinho não poderia ser diferente. Muitas das grandes enotecas já dispõem de prateleiras separadas para os chamados “biôs”. Na pequena Cremerie, uma das lojas mais charmosas de Paris, isso não é preciso: todos os vinhos encontrados ali seguem a linha natural.

Cremerie: o lugar é pequeno, é bom reservar – Foto de Bruno Agostini©

O endereço, uma lojinha de fachada azul escondida numa pequena rua de Saint-Germain-des-Prés, é pioneiro: desde 2001 vende apenas vinhos feitos da maneira mais natural possível. Também é possível levar para casa queijos, presuntos, embutidos, foie gras, azeites, entre outros bons produtos. Quem quiser pode se sentar em uma das (poucas) mesas no pequeno salão da loja para comer e beber papeando com os donos, que não arredam o pé dali, e servem pessoalmente a clientela. Para não ficar sem lugar, é melhor reservar.

* Nunca fui muito adepto do #TBT, sempre gostei de postar as coisas “ao vivo”. Com um tempo deixei de ser radical, mas nada de aderir à hashtag de quinta, dedicada às saudades e boas recordações, muitas lembranças de viagens, pratos deliciosos e lindos vinhos. Nesses tempos em que estamos todos saudosos, começo a publicar aqui, neste dia, alguns textos antigos, de lugares de que muito gosto, como é o caso de Paris. Hoje é primeiro de abril, e te digo: é o melhor mês para visitar a capital francesa (todas as fotos são do finalzinho de abril, cidade estava linda, quentinha, florida e cheia de gente feliz pelas ruas, comendo e bebendo e celebrando a primavera.
Saudades. (Texto de 2010, escrito para a revista Boa Viagem).
Semana que vem teremos mais #TBT de Paris com “
Departamentos do sabor: de piqueniques à cozinha molecular nas lojas de Paris”, sobre os melhores mercados gastronômicos da cidade e um giro pela Place de la Madeleine, que ‘vicia, custa caro e engorda’.

 

2 commentários
  1. Montorgueil, Mouffetard, Raspail, dentre outros, esses nomes me referem à Amaury Temporal e 2 de seus 3 livros. Como um rei na França e Bom Tempo na França. Conhece? Essas ruas e feiras e mercados estão todos lá. Ele era um puta gourmet e a França a sua paixão. Conheceu-o pessoalmente? Tem os livros dele?

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