Barolo x Barbaresco: um roteiro pelo Piemonte atrás de trufas, vinhos e pratos típicos da região mais saborosa da Itália

Grafite no centro de Alba – Foto de Bruno Agostini

Na manhã fria do final de outubro entramos no 4 x 4, que nos conduz a um bosque cortado por estradas de terra nos arredores de Rochetta Tanaro, cidadezinha próxima de Asti, no Piemonte, no norte da Itália. Na parte de traz do carro viaja o personagem mais importante daquele programa; Pongo, um cachorro simpático de raça indefinida. Sua função aguça os paladares mais finos do mundo: farejar a floresta para encontrar as trufas brancas de Alba, batizadas com o nome da cidade que está um pouco mais ao sul, uma das mais raras, caras e cobiçadas iguarias do mundo – e que cresce junto às raízes de certas árvores da região entre outubro e dezembro.

Tajarin com trufas brancas na excelente Trattoria della Posta – Foto de Bruno Agostini

A temporada das trufas é o período turístico mais concorrido na região, que é berço também de dois dos mais cultuados vinhos da Itália, Barolo e Barbaresco. Na cidadezinha de ruelas medievais e subúrbios industriais acontece uma feira anual de trufas, que atrai visitantes de todo o mundo, entre eles chefs de cozinha incumbidos de comprar a iguaria para os seus restaurantes. É um festival da boa mesa, ápice do calendário gastronômico local.

Flan de cardi, regado com trufas brancas, no La Speranza, em Farigliano – Foto de Bruno Agostini

O preço varia de ano a ano, mas a adição  de trufas a um prato nos restaurantes locais vai custar cerca de 20 euros a mais, e há menus com cinco pratos com trufas por 100 euros. Quase sempre a trufa é vendida por grama, cotada em balanças de precisão levadas à mesa. Na feira, inspetores atestam a originalidade da trufa (sim, mesmo ali existem versões piratas, vindas tanto de outras regiões europeias, como até da China).

Especialidade local, o tartare de fassona na Trattoria della Posta – Foto de Bruno Agostini

As trufas brancas de Alba são uma atração turística em si. Viajantes vão até lá só por causa delas. No final do ano, goumets do mundo todo peregrinam até o Piemonte para devotar refeições às trufas, servida de diversas formas: sobre o tartare de gado fassona, um vitelo de carne rosada e delicada, especialidade local; ou coroando um simples ovo frito, ou derramado em cima de um tajarin alla chitarra, um talharim caseiro, que muitas vezes é apenas salteado na manteiga antes de receber o banho de trufas brancas.

O tajarin com fonduta de queijos do Piemonte e trufas brancas, com Marchesi di Barolo – Foto de Bruno Agostini

Quanto mais fresca a trufa, mais marcante será o seu perfume, intenso, mas delicado, lembrando terra molhada, cogumelos, mel, especiarias, alho… Em busca de frescor e abundância, turistas amantes da boa mesa lotam os hotéis e restaurantes no final do ano. É um caso único no mundo: a época das trufas é a alta temporada turística no Piemonte. Em nenhum outro lugar uma única iguaria é capaz de transformar um período do ano frio, úmido, nebuloso e chuvoso no momento mais concorrido do calendário entre os visitantes estrangeiros. Brasileiros são vistos em quantidades cada vez maiores.

Joia rara: as trufas brancas, fresquinhas – Foto de Bruno Agostini

AS TRUFAS

Participar da caça às trufas é parte do itinerário turístico, a ponto de existirem placas anunciando o programa no centro de Alba e outras cidades da região, como a pequena Rocheta Tanaro, onde embarcamos na aventura. Saímos bem cedo, horário tradicional para essas caçadas. Uma névoa não muito densa encobre os carvalhos, uma das árvores cujas raízes abrigam este fungo com estrutura de tubérculo que cresce espontaneamente naquelas florestas úmidas do outono piemontês. Caminhamos por mais de uma hora por campos enlameados, cutucando a terra escura em busca das trufas nos pontos em que o cão indicava. E nada. Não encontramos “tartufo bianco” daquela vez. O tartufaio, o caçador de trufas, treina cachorros e conhece os melhores lugares para achar a iguaria. Os melhores cães podem valer até 10 mil euros. Muitas vezes a caçada é frustrada. Para evitar passar vergonha, dizem que muitos dos que fazem disso um programa turístico escondem umas trufas antes de chegar com os grupos. Não duvide.

O Mercato Mondiale del Tartufo Bianco d’Alba – Foto de Bruno Agostini

Alba é o epicentro da vida local, um bom lugar para servir de base para os turistas. Algumas vezes ao dia o aroma de avelã com chocolate toma conta do ar: é mais uma leva de Nutella ou Ferrero Rocher sendo produzida na fábrica da empresa de doces que foi fundada ali, valendo-se da alta qualidade da avelã local – uma espécie de cereja no bolo do Piemonte gourmet.

Codorna assada na Trattoria della Posta – Foto de Bruno Agostini

A partir de outubro e até dezembro, e às vezes indo até o final de janeiro, a temporada de trufas reforça o Piemonte como destino gastronômico. Os restaurantes ficam lotados de turistas. Um dos preferidos pelos moradores, a Trattoria della Posta é ponto de encontro de produtores de vinhos, juntando a tradição da cozinha campestre com a nobreza da iguaria (a foto de abertura deste post é o o simples e sensacional tajarin com tartufo bianco servido ali). Uma aprazível casa de campo nas colinas de Monforte d’Alba (uma das comunas de Barolo) tem uma das cozinhas mais cultuadas da região, um salão elegante e trufas sempre frescas a perfumar o ambiente. Elas são usadas em receitas simples, como o tartare de gado Fassona ou o talharim na manteiga. Pratos típicos da região dão forma a um cardápio tradicional impecável, com gnocchi de batata com fonduta de queijo, bagna cauda, talharim ao ragu de carne, codorna assada, stinco de vitelo ao Barolo…

Torre medieval no centro de Alba – Foto de Bruno Agostini

Tirando partido da vista esplendorosa para a paisagem montanhosa da Langhe, o Bovio, em La Morra, é outro dos restaurantes mais conhecidos e visitados pelos turistas. No cardápio, vitello tonnato “alla vecchia maniera”, battuta di fassone piemontese, o tartare de vitelo cortado na faca, tortino di funghi porcini con fonduta di Raschera, uma tortinha de cogumelos com queijo e o raviolini del plin servido com um denso molho resultante do cozimento da carne. Trufas vistosas guardadas em redoma de vidro circulam pelo salão, perfumando o ambiente elegante, raladas à exaustão.

Dal plin do Da Guido: um dos melhores pratos do mundo – Foto de Bruno Agostini

O delicado raviolini del plin é um ícone da cozinha piemontesa, servido em diferentes versões. A mais espetacular delas atende pelo nome oficial de “agnolotti di Lidia al sugo d’arrosto”, a receita de família do ristorante Da Guido, no belo hotel Relais San Maurizio, um dos melhores do pedaço, talvez o mais imperdível entre os restaurantes imperdíveis do Piemonte, um programa obrigatório, bem como a visita à cave que guarda verdadeiras raridades.

Dal plin de rabo de boi ao Conhaque – Reprodução do site http://www.ristorantecesaregiaccone.it

Em Albaretto della Torre, o Ristorante dei Cacciatori é a casa de um cozinheiro mítico do Piemonte, Cesare Giaccone. O cabrito da Alta Langhe assado está entre os pratos mais espetaculares e famosos do lugar, onde também encontramos risotos de execução impecável.

Vinhedo de Barbaresco – Foto de Bruno Agostini

Boa parte dos melhores restaurantes está espalhadas pelas áreas rurais, na comunas vinícolas de Barolo e Barbaresco. Mas o centro de Alba também guarda grandes cozinhas, a começar pelo Ristorante Piazza Duomo, no coração da cidadela, na praça central que dá nome à casa. Dono de três estrelas Michelin, o restaurante dá contornos contemporâneos para a cozinha tradicional do Piemonte, com menus degustação longos, um deles chamado de “Tradição e inovação”, um desfile de pratos de apresentação impecável. Na temporada das trufas, um menu temático explora a iguaria em várias receitas.

Misto de aperitivos no la Piola – Foto de Bruno Agostini

Na mesma Piazza Duomo, La Piola é uma casa de perfil mais informal dos mesmos donos, com cardápio dedicado aos clássicos da cozinha piemontesa servidos em sua forma mais pura. Vitello tonnato, ravióli da plin, tajarin al ragù di salsicia di Bra e bollito misto ficam listados no quadro negro, ao lado dos vinhos do dia.

Ainda na área central de Alba, a Osteria dell’Arco é um restaurante ligado ao movimento Slow food, que combina uma carta de vinhos muito boa com um cardápio local preparado com competência.  Tajarin al ragù di salsicia, ravióli da plin e gnocchi di patate con pomodorini estão entre as melhores pedidas. Durante a feira de trufas é um dos restaurantes mais concorridos, e fazer reservas é fundamental.

Agnolotti do Il Bologna – Foto de Bruno Agostini

Aquela porção de terra é abençoada, que dá origem não só às trufas mais desejadas do mundo, mas também às avelãs mais ricas, além de queijos cheios de personalidade, embutidos e uma matéria-prima de alta classe que abastece as estreladas cozinhas locais. Sem falar nos vinhos… As comunas de Barolo e de Barbaresco estão bem perto de Alba, geralmente a menos de meia hora de carro. Mas quem visita a região com propósito gastronômico deve explorar cidades um pouco mais distantes, como Rochetta Tanaro, Piozzo e Farigliano, todas a menos de uma hora de carro a partir do centro de Alba.

Bochecha de cavalo com maçã e menta – Foto de Bruno Agostini

A Trattoria Il Bologna, na área central de Rochetta Tanaro, é um desses restaurantes que já valem a viagem. Funcionando em um antigo estábulo, o salão fica ainda mais aconchegante sob o calor da lareira, e a adega que abriga verdadeiras raridades antigas, e que merece ser vasculhada com esmero. No menu, trivialidades como um vitello tonnato impecável, ou cogumelos grelhados com gema de ovo mole, até escolhas um pouco mais excêntricas para os paladares brasileiros, como uma bochecha de cavalo cozida lentamente no vinho tinto e servida com um purê de maçã e folhas de menta. A carne equina é comum no Piemonte, e encontramos cavalos e asnos nas feiras, em forma de embutidos ou carnes curadas, e nos açougues e restaurantes.

Conterno, sobrenome de elite da enologia do Piemonte – Foto de Bruno Agostini

Na área de Alba propriamente dita quase já não se encontram trufas. Seus bosques foram todos derrubados. Mas por uma boa causa: nos vilarejos dos arredores da cidade são produzidos dois dos grandes vinhos da Itália, à altura da nobreza das trufas: os primos Barolo e Barbaresco, feitos com a mesma uva Nebiollo, e as grandes estrelas da enologia local.

Ovo em cocotte com trufas brancas do La Speranza – Foto de Bruno Agostini

As florestas preservadas onde crescem as trufas estão um pouco mais distantes, fora das zonas vinícolas, em cidades como Farigliano. Ali encontramos um dos melhores restaurantes para se deliciar com as trufas. No La Speranza o casal Maurizio e Sabrina Quaranta se revezam entre a cozinha e o salão. As trufas servidas ali geralmente foram colhidas pela manhã, naquele mesmo dia, o que faz toda a diferença. Além de massas e carnes servidas com a nobre cobertura, uma fonduta de queijo com ovo mole arranca suspiros.

Baladin Luna 2010, uma das cervejas realmente especiais produzidas por Teo Musso – Foto de Bruno Agostini

Nesta área famosa pelos vinhos, a cerveja também merece destaque. Não muito longe dali está Piozzo, da famosa cervejaria Baladin, do irreverente Teo Musso, que abriu no local um bar e restaurante que serve a bebida diretamente da torneira, além de um pequeno hotel, ambos na praça central da cidade.

Costeleta de vitelo à milanesa, do La Cinzia, em Vercelli – Foto de Bruno Agostini

Aos apreciadores dos risotos, uma esticada até Vercelli, a pouco mais de 100 quilômetros de distância, é um programa fundamental. Conhecida como a capital do arroz carnaroli, a cidade é cercado por plantações do grão. No restaurante e hotel Cinzia ele é tratado com raro talento.

Risoto de coelho com foie gras do La Cinzia – Foto de Bruno Agostini

O cardápio dos irmãos Christian e Manuel Costardi explora todas as suas possibilidades, desde receitas tradicionais, como a “panissa alla vercellese, um risoto com favas, linguiça e vinho tinto, até combinações de perfil mais autoral, como o fantástico risoto de codorna com foie gras e fonduta de queijos piemonteses, criação genial que usa o fígado gordo de pato no lugar de manteiga para dar textura mais cremosa – um desses pratos que sozinhos já valem a viagem até lá.

 

É preciso provar o badaga blu, disponível no restaurante do da Guido – Foto de Bruno Agostini

HOTÉIS

O perfume intenso das trufas é capaz de atrair para a região milhares de visitantes todos os anos durante a temporada da iguaria: apesar do frio, e do clima hostil da transição do outono para o inverno no norte da Itália, os meses de outubro e novembro, com ainda mais intensidade, dezembro e janeiro, são a alta temporada na região, é fazer reservas, principalmente de hotéis, com antecedência é fundamental. Assim como acontece com os restaurantes, grande parte dos melhores hotéis se encontra nas comunas dos arredores de Alba, nas áreas de produção de Barolo e Barbaresco, como o próprio Relais San Maurizio, onde funciona o restaurante Da Guido.

Os queijos da região são tão fantásticos quanto os vinhos – Foto de Bruno Agostini

La Ciau Del Tornavento, em Treiso, é outro lugar que conjuga quartos confortáveis com excelente cozinha, e uma adega muito bem abastecida. Com uma varanda que apresenta um belo panorama do lugar, o restaurante tem pratos impecáveis, mesmo aqueles de execução mais complexa, como la finanziera, prato clássico do outono no Piemonte, um misto de miúdos, incluindo até crista de galo, com cogumelos e vinho branco, uma verdadeira delícia, acredite.

Assinatura do chef estrelado Antonino Cannavacciuolo: Villa Crespi – Insalata liquida di riccia, stracciatella di bufala, crudo di scampi – Foto de Bruno Agostini

Com arquitetura moderna que destoa um pouco da placidez campestre que marca a paisagem da Langhe, o resort Il Boscareto é amplo, bem localizado, confortável e com serviço de alto padrão. O hotel pertence à família Batasiolo, uma das maiores vinícolas do Piemonte, em Serralunga d’Alba, e tem um spa formidável, além de outros acessórios que atraem não hóspedes, incluindo loja, bar e um restaurante com estrela Michelin. O  ristorante La Rei está sob a batuta de Antonino Cannavacciuolo,  chef dono de duas estrelas Michelin no restaurante do Villa Crespi, no Lago d’Orta, na divisa do Piemonte com a Lombardia (um lugar lindo, aliás, com restaurante muito bom: vale considerar uma esticada até lá). Com vista para os vinhedos são servidos refeições que conjugam os melhores ingredientes locais com técnica precisa e algum tempero criativo, as marcas do chef.

 

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