Nos últimos anos eu me tornei íntimo da cozinha e dos vinhos da Sardenha, de tanto que visitei o restaurante A Casa do Sardo, um dos lugares de que mais gosto. Esta ilha tem, para mim, uma das culinárias mais ricas do mundo, que transita entre os frutos do mar e da terra, com alguns ingredientes únicos que só existem lá, como os queijos cazu marzu e su callu, sobre os quais em breve eu escreverei aqui.
Os vinhos me impressionaram, e eu visitei seis ou sete vinícolas durante a minha viagem de dez dias, quando fui guiado pelo amigo Silvio Podda, sócio e chef da Casa do Sardo. Infelizmente nesta lista de cantinas não estava uma de minhas preferidas: a Tenute Dettori, que produz dois vinhos que eu classifico como extraordinários, chamados simplesmente assim: Vino Renosu Bianco e Vino Renosu Rosso. O que tem de simples no nome há de complexo nos vinhos.
Gosto – muito – de ambos, mas o Bianco toca mais fundo o meu coração. Tecnicamente este é um vinho branco, como indica o nome, mas também poderia ser chamado de laranja ou âmbar, como prefere um dos papas desse estilo, o também italiano Josko Graver, do Friuli, que já foi tema de post aqui neste site, um dos maiores gênios da enologia mundial em minha opinião.
Mas hoje o assunto é a Sardenha e o Renosu Bianco (um Romangia Bianco I.G.T. não-safrado). E porque esta “Bianco” também pode ser chamado de “laranja” ou “âmbar”? Isso se deve ao processo de vinificação, que tem um longo contato das cascas com o mosto do vinho, durante a fermentação. É um branco vinificado como se fosse tinto, como se fazia em tempos remotos. Esse contato das cascas com o vinho dá cor alaranjada ao vinho, além de corpo e estrutura. Este processo se chama maceração pelicular, e neste caso ele leva de dois a quatro dias com o vinho em contato com as cascas.
Produzido com a uva branca mais popular da Sardenha, a Vermentino (com um pouco de Moscato de Sennori), este é um branco valente, complexo e profundo, de aromas que transitam de frutas frescas a ervas e flores, além de cascas de laranja e limão siciliano, sem deixar de apresentar um dos traços mais característicos dos vinhos sardos: a deliciosa mineralidade, resultado do solo arenoso e pedregoso que é um dos traços mais marcantes dos vinhos locais, em especial dos brancos. São vinhedos de aproximadamente 40 anos de idade, a cerca de 300 metros de altitude, tratados de maneira mais natural possível, assim como o vinho, de baixíssima intervenção (e produção), fermentado com leveduras indígenas presentes nas cascas das uvas, reforçando o caráter local do vinho, um dos grandes representantes do “território” (como chamam o “terroir” na Itália) sardo. Sem presença de madeira, o vinho tem maturação de 24 a 36 meses, em tanques de cimento inerte. Tem um final de boca longo, agradável e que é puro prazer, no aroma e na boca, apresentando uma acidez marcante, que em sintonia com a complexidade do vinho o torna extremamente gastronômico, encarando sem medo pratos de carne, em especial cortes mais gordurosos. Como indica o rótulo, o vinho tem sulfitos, mas adicionados em muito baixa quantidade, o mínimo possível para manter sua integridade por um bom tempo. Sim, é um vinho natural.
A Decanter, que importa este vinho para o Brasil, faz a seguinte sugestão de harmonização: “Mousse di ceci con acqua di arselle veraci, bottarga e tartufo nero (mousse de grão de bico cozida em água de pequenos moluscos, finalizada com bottarga e trufa negra); massa fresca envolvida com vieiras e açafrão; perdiz cozida com lentilhas; coelho em salmì (marinado em vinho, geralmente tinto); fettuccine alla bottarga; seleção de pecorinos sardos.” Eu assim embaixo, e diria ainda que este vinho tem grande amplitude no quesito harmonização, e eu gosto dele com pratos de cordeiro, bem como leitão assado, duas especialidades da Casa do Sardo. Também gosto com embutidos mais gordos e condimentados, de uma maneira geral, entre salames e linguiças. A Decanter sugere, ainda, uma estimativa de guarda de até oito anos, mas eu já provei exemplares com mais idade, e penso que este vinho ainda está exuberante, e ainda mais até, com 15 anos.
No Rio o vinho pode ser encontrado no representante da Decanter (e da Adega Alentejana) na cidade, a loja Espírito do Vinho, na Cobal do Humaitá. Custa R$ 200 (o tinto sai a R$ 220). Tel.: 2535-0070; 2286-8838 e WhattsApp (21) 99625-4966, além do e-mail espiritodovinhoaodispor@gmail.com (Procure Aníbal Patrício, que sempre tem boas sugestões de rótulo, além de excelente portifólio de vinhos e bebidas, em geral, além de acessórios). www.espiritodovinho.com.br
www.tenutedettori.it
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1 comentário
Bruno parabéns pelo post. Excelente. Deu agua na boca