Queria me lembrar quem foi o professor que me recomendou a leitura do livro “La Raison Gourmande” (A Razão Gulosa – Filosofia do Gosto), do francês Michel Onfray. Para agradecer.
No Prólogo, há uma passagem em que ele se recorda de uma manhã, quando comeu morangos no campo com o pai. Colher e experimentar a fruta madura e bem aquecida pelo sol, lavada em água gelada, gerou um momento de sublimação, tão grande, e até maior, do que os grandes vinhos ou as iguarias mais finas que o autor havia provado ao longo de uma vida “gourmande”.
Muito por conta desta história, tornou-se um livro essencial para mim, que exploro ao máximo a memória quando me sento para escrever, sobretudo sobre comida e os temas relacionados: as viagens, os vinhos e todo o resto que acompanhou esses momentos.
Evocar as lembranças afetivas inspira, e canaliza para as frases um pouco da emoção que sentimos ao provar algo de que gostamos, ou que experimentamos pela primeira vez, e que nos ativa mais que as papilas, mas também as recordações mais profundas.
É uma forma de tentar explicar o inexplicável.
A experiência sensorial do autor é, sobretudo, permeada pelo espanto de provar algo inédito. Algo conhecido, o morango. Mas, não assim: fresco por fora, e quente por dentro. Ao contrário do que estava habituado. Diferente, e melhor e mais marcante que todos os outros morangos. Por conta de algo tão simples e corriqueiro, quanto o sol e a água.
Eu me lembrei disso outro dia, quando estava quente e minha amoreira carregada. Muitas delas tão negras e maduras que já caiam de maduras, sujando o chão. Resolvi colher algumas, para comer com iogurte na manhã seguinte. Estavam quentes e suculentas, como o morango de Onfray. Devorei todas as que estavam neste ponto, e foi um momento sublime. Que inspirou este rascunho.
A metafísica do paladar.
Isso acontece quando a gente come algo sublime. Posso provar todos os estrogonofes do mundo, para mim nunca haverá um melhor do que o da Dona Irene.
O mesmo ocorre com a esfirra do Baalbeck, na Menescal. E com o croquete da Casa do Alemão. Viagens até os primeiros anos de vida, quando os sabores começam a nos atrair. E ficam gravados para sempre. E até mesmo norteiam as nossas preferências.
Mas também pode ocorrer de um dia a gente se deparar com um sorvete monumental, batido na hora, servido de modo quase teatral, mais do que isso, operístico. Vem aquele assombro, o espanto, que segundo Ferreira Gullar – e eu concordo – é a inspiração dos poetas. Esse é melhor do que todos os outros. Por Nello Cassese, no Cipriani. Como o morango do Onfray, só que já na vida adulta, depois de provar milhares de sorvetes, em todos os cantos do mundo, encontrei um diferente e melhor que todos os outros.
E tantos pratos que nos lembramos para sempre. As rãs da avó do Bondoux, que voltei a provar na semana passada.
A sardinha com brioche e foie gras do Landgraf.
Ou gli agnolotti al plin di Lidia no Guido da Costigliole. Na temporada de trufas…
Tudo isso para dizer que eu recomendo a leitura deste livro, que faz a gente pensar.
Fui buscar na estante, e vou ler novamente. Já está no escritório. Não me atrevi sequer a reler o Prólogo. Vou estender esse prazer até a próxima semana. Porque durante os próximos dias quero refletir um pouco sobre o assunto antes de folhear essas saborosas e complexas páginas, profundas e também um tanto reveladoras.
Onfray é filósofo, dedicado a explorar os sentidos, sobretudo o paladar, o olfato e a visão. Merecidamente premiado, tem outros livros, como “O Ventre dos Filósofos” como obras essenciais.
Bom domingo!