Trata-se do mais brasileiro dos pratos eslavos. Pelo menos aqui no Brasil, um dos pratos mais adorados e distorcidos é o estrogonofe, prato de origem russa que está entre os mais populares por aqui, onde é servido de muitas maneiras, inclusive como recheio de crepes, pasteis e batatas assadas, em forma de croquete, e até de algumas maneiras bem bizarras, como cobertura de pizzas ou em versão doce, de chocolate (e as salgadas, de frango ou camarão: passo longe dessas releituras). Deus perdoa essas pessoas, do mesmo modo que já me absolveu: no começo dos anos 1990 no restaurante que eu frequentava eu pedia estrogonofe, trocando arroz branco por farofa, e batata sautê por fritas palito. Acontecia, era bom, mas já não faço mais. Sou muito farofeiro mesmo.
Durante a Copa da Rússia vimos um festival de reportagens sobre o mais famoso dos pratos russos: mostravam as origens da receita e também a sua fórmula original, temas que eram a maior obsessão dos repórteres. Mas, infelizmente (ou não), nem sempre a gastronomia pode ser contata tão facilmente assim. Há versões sobre os fatos, a muitas vezes as duas ou três diferentes narrativas estão corretas. Como parece ser o caso do Beef Stroganoff ou Beef Stroganov. Verdade é que existia um político e diplomata de família rica e tradicional chamado Alexander Stroganov, no começo do século 19, quando o prato começou a tornar popular no país (mas poderia ser, ainda, referência ao Conde Pavel Stroganov). Isso não significa que algum deles tenha inventado o estrogonofe, podiam ser apenas apreciadores, ou terem dado forma à receita que se espalhou pela Rússia, antes de ganhar o resto da Europa, a Ásia e as Américas, ganhando espaço em livros de receitas e em cardápios de hotéis – o método de preparo, flambando a carne no meio do salão do restaurante, com conhaque (não seria vodca?), é vistoso, e típico dos serviços culinários hoteleiros, em especial no começo do século 20, quando o prato ganhou o mundo.
Também se diz que a receita que já era praticada por algumas famílias, foi aperfeiçoada por um chef francês, que mais tarde teria introduzido o estrogonofe em Paris. Pode ser tudo verdade. Sem contar que a palavra “strogat”, em russo, significa “cortar em pedaços”.
Pois, além de especulações e versões não comprovadas, a História é contada através dos fatos, e neste caso há dois registros incontestáveis. O primeiro, num livro escrito para jovens recém-casadas, em 1871, de Elena Molokhovets, que apresentou o “bife à Stroganoff” (Govjadina po-strogonovski, s gorchitseju). Quase 20 anos depois, em 1890, quando foi servido e assim denominado em um concurso de culinária.
Por isso tudo, dizer que a receita original é assim ou assado, é um erro. Porque não é, como é o caso de tantos pratos clássicos, com gêneses difusas. O que se pode dizer é que três ingredientes estão nas primeiras versões propagadas, e continuam até hoje: carne cortada em cubos, e não em tiras (também aceitas), e smetana (um tipo de creme azedo típico da Rússia, e não creme de leite fresco, como ganhou o mundo), além de mostarda. Na sua terra natal é servido com picles de pepino e batatas salteadas, ou mesmo assadas. Cebolas e cogumelos teriam sido acrescentados na França, e conforme o prato viajava ganhava novas adaptações aos ingredientes e hábitos locais (no Japão, onde é bem popular, pode ter molho de soja, e nos EUA vira um molho para massas longas, como espaguete e talharim).
O mais próximo que chegamos dessas versões servidas na Rússia nós encontramos no restaurante Dona Irene, em Teresópolis, hoje o único especializado na culinária dos tempos dos czares, em todo o Brasil.
– Nós fazemos o nosso próprio smetana, e flambamos com conhaque – conta Maria Emília, que comanda a cozinha da casa (em breve farei uma resenha detalhada das tantas e inesquecíveis refeições que já fiz por lá, enquanto isso, deixo este link).
Encontramos o estrogonofe em muitos endereços tradicionais do Rio de Janeiro, em versões diversas, e o prato é dos mais populares, mais até do que muitas receitas de nossa culinária tradicional (mesmo o picadinho, por exemplo). Entre as versões mais recomendáveis que eu estão as do Esplanada Grill e da pizzaria Camelo, em Ipanema; do Málaga, no Centro; e do Giuseppe Grill, no Centro e no Leblon, ambos preparados seguindo a tradição… brasileira. É o prato mais festejado do restaurante A Polonesa, assim como o suflê de chocolate, mas para mim ambos decepcionaram. Em todos os casos, são servidos com arroz branco e batata (pode ser palha, frita, chips ou sautée. Gosto com a palha, porque acho que combina muito essa crocância com aquele molho cremoso e rosado, fruto do encontro do tomate com o creme de leite fresco (parte da coloração do original vem sobretudo do fundinho de panela).
Quando criança eu adorava o estrogonofe do Rio Nápoles, na Praça General Osório (onde hoje é o Belmonte), e desde então já percebia a diferença entre a versão brazuca e a russa, uma vez que já frequentava o restaurante Dona Irene.
Porque o estrogonofe é mais que um prato tradicional do Brasil, cujo auge de popularidade foi nos anos 1970, sendo servido nas festas mais chiques: é um processo, um conceito, e que quase todo mundo, todo o Mundo mesmo, o planeta Terra, adora.
Para encerrar, deixo este link do insuspeito The Guardian, sobre o “renascimento” do estrogonofe (em inglês).
Que saudades de ir ao restaurante Dona Irene: certamente será dos primeiros lugares que irei quando acabar essa pandemia. Um banquete para festejar o fim da quarentena é algo merecido.