O silêncio que precede o estrondo.
Pensei na expressão ao me lembrar da Sardenha, e de toda a dificuldade inicial para começar a escrever sobre a viagem, uma intensa jornada, me infiltrando pelo miolo da ilha, tateando sua alma, percorrendo suas bordas, alcançando os seus comes e seus limites, seus costumes e sua gente. Fiquei alguns dias sem conseguir escrever, quase um bloqueio psicológico, mas desde ontem desembestei a narrar histórias dessa viagem tão especial.
Logo no primeiro dia, um almoço de boas-vindas na casa da irmã do meu guia e anfitrião o chef Silvio Podda, sardo de nascença e de coração, me apresentou um pouco de tudo o que experimentaria dali em diante, ao longo de quase duas semanas de esbórnia, felicidade e boa mesa.
Provei ali algumas das melhores comidas da vida, e das mais diferentes também. Comi caracóis de mar e de terra, enguias, ovas de tainha, ouriços, spek de atum, churrasco de miúdos de cordeiro, lagostins crus, barriga de cavalo na brasa, e uma grande e variada produção de queijos, incluindo dois inigualáveis, o casu marzu – maturado com larvas vivas de mosca – e um outro produzido naturalmente dentro do estômago de um cordeiro de leite. Gamberro rosso cru, e tantos outros pescados servidos assim, na pureza de seu frescor.
A Sardenha não é para qualquer um, até porque nem todo mundo merece – filosofei à certa altura da viagem, encantado pelo que via e vivia, sobretudo pelas pessoas que conhecia, e pelas coisas que comia. Com todo o respeito aos que viajam com outros propósitos, mas para mim a comida é sempre o principal fio-condutor de um roteiro, é a própria razão de ser de uma viagem. E nesse aspecto a Sardenha é um destino e tanto, de deixar viajante experimentado no mundo da boa mesa de queixo caído.
Ficamos boquiabertos não só com a paisagem “veramente” linda, com mar e montanha montando um cenário que resume bem o que se come. Das águas translúcidas e gelados os pescadores tiram peixes e frutos do mar do mais absoluto frescor. Nas encostas de visual agreste brotam vicejantes ovelhas, cordeiros, leitões, cabras, alcachofras, açafrões, aspargos e toda uma sorte de alimentos de raro sabor. Nada do que é estrangeiro se faz necessário ali. O que se produz na ilha basta para se ter as melhores refeições possíveis. De embasbacar. De dar água na boca. De emocionar.
Durante a viagem eu brincava dizendo que eram 20 novidades por dia, e isso não era exagero: eu nunca aprendi tanta coisa em tão pouco tempo. Por ter uma natureza tão particular, por ser uma ilha ao mesmo tempo tão isolada e também tão universal, por ter sido invadida e cortejada por tantos povos ao longo de sua história guerreira, a Sardenha é um rico microcosmo, que gira ao redor da boa mesa, ao sabor de um cardápio mediterrâneo legítimo, com o melhor do que a terra dá de comer.
Nas próximas semanas, junto aos posts de praxe, este site vai ter muita história boa da Sardenha para contar. E desde já adianto que o verão nesta ilha é dos mais badalados da Europa atualmente. E que foi dos lugares onde comi melhor em toda a vida, mesmo nos lugares mais simples, e especialmente nas casas das pessoas, acolhedoras como poucas vezes eu vi, do mesmo como cozinham bem e amam a comida de maneira intensa, mesmo em relação ao resto da Itália. Desses lugares que entram no coração da gente, e para onde queremos voltar sempre, e eternamente.