Olha para essa torre. São três andares. Nos ambientes gelados moram várias famílias. No térreo são ostras. Eram duas ou três famílias diferentes. No segundo, confesso, não sei o nome de todos os clãs, porém reconheço navalhas, vôngoles e caracóis do mar, e uns primos dos abalones. Na cobertura reinam os mexilhões, de quatro ou cinco origens diversas. Ao todo, habitam o edifício mais de 15, quase 20 DNAs diferentes, abrigados sob o mesmo grupo étnico: moluscos bivalves (exceção aos caracóis).
Esse serviço foi um dos capítulos do meio, mas que parecia o que se chama em filmes e romances de clímax: sinal de que o enredo está acabando. Mas era apenas o começo.
(Os vinhos da noite na galeria abaixo)
Para resumir essa ópera marinha marcada pelo frescor, exuberância e diversidade, eu digo que esta foi a melhor refeição baseada em frutos do mar de toda a minha vida, tentei, tentei, tentei, mas não consegui lembrar de outra melhor (segundo lugar foi La Madia, em Licata, na Sicília, seguida de perto – talvez empatadas – por Il San Lorenzo, em Roma: nos próximos dias vou mostrar aqui as razões, escrevendo sobre eles). Sim, o pódio de minhas melhores experiências com peixes e frutos do mar é inteiramente dominado pela Itália. Por essas e outras, eu digo sempre, e escrevi aqui ontem… A Itália é meu país preferido no mundo.
Mas vamos situar esse enredo nababesco e netunal. Quem, quando, como, onde e por que? Estávamos eu, Silvio Podda e sua mulher, Gladys, além de sua sobrinha, Laura, e a queridíssima Eloisa Aquino. Que mesa incrível. Era noite do dia 7 de março de 2019. Como? Comemos muito. Onde? Cagliari, capital da Sardenha, mais precisamente no restaurante Martinelli’s. As razões da escolha que o Silvio fez: nos despedirmos de sua ilha natal. No dia seguinte embarcaríamos de volta ao Brasil.
Não poderia haver escolha mais feliz. Curiosamente ele fez algo que é um hábito meu. Gosto sempre de, na véspera de voltar de uma viagem, reservar a última noite para um jantar de gala. Escolho criteriosamente onde será a última refeição (ou penúltima, porque no dia seguinte deu tempo de almoçar na excelente trattoria La Mola Sarda, que em breve também será tema de post por aqui). Mas, agora, vamos voltar ao começo.
O restaurante fica na zona central da cidade, e parece ser um clássico. Estava lotado, é bom reservar.
A farra começou com finos biscoitinhos cobertos de ouriço. Os melhores ouriços que comi na vida foram na Sardenha. Ouriço, nas praias sardas, são como biscoito Globo nas do Rio. Há barracas que vendem a iguaria, fresquíssima. Uma loucura. Mas voltemos ao Martinelli’s. Debaixo das lâminas crocantes cobertas com maravilhosa iguaria espinhosa estava folhas de endívia, criando ainda mais prazer.
Daí vieram conchas grossas com o que eu suponho ser um marisco da família dos abalones. Ligeiramente tostados, a ponto de caramelizar, com fios de limão siciliano, que são sempre boas soluções com algo que venha do mar.
Pois então chega a torre já apresentada acima. Que não consigo mais explicar. Foi uma experiência não só inesquecível, mas que preciso sublinhar: Não me lembro de ter comido nada parecido, nada tão grandioso e diverso, nada tão fresco e profundo.
Era como se eu estivesse na porta do Paraíso, e daí vieram deusas do Olimpo. Ofereceram-me camarões vermelhos. Gambero Rosso, melhor dizendo. Crus, despidos de casca, tão puros quanto a Natureza os oferece, tão naturais quanto a pureza nos proporciona. Algo sobrenatural. Havia até um bom azeite besuntando sua carne rosada, o que ainda a fazia ser melhor.
Estando às portas paradisíacas, não havia razão de recusar outros prazeres. Vieram lagostins. Igualmente crus. Igualmente frescos, igualmente lambuzados de azeite, igualmente divinos. Ali, vi que Deus de fato existe. Isso não é hipérbole. É fato. Nada explica tão bom é isso, senão o mistério da divindade.
Como que uma benção, fui apresentado a algo ácido que não conhecia, contraponto à doçura marinha – e por isso – salina do lagostim: era o limão australiano, algo esplendoroso, como se fossem bolinhas de caviar cítricas, enclausuradas numa cápsula absolutamente saborosa. Escoltavam ostras, mas eram elas a estrela principal. Não conhecia a iguaria, foi minha primeira e inesquecível experiência com ela, e que sonho repetir.
Agora, sim, estávamos perto do fim.
Veio uma saladinha. De camarões no vapor, e de atum confitado no azeite. Havia um peixe também, não sei qual, e tomatinhos temperados com dill.
Veio uma salada, com funcho, cubinhos de torrada no azeite, cebola… Aí, sim, foi o sinal de que estava acabando aquele jantar. Na Sardenha, refeições terminam com funcho, aprendi ao longo de dez dias de viagem.
Mas, opa: espera aí. Ainda tem funcho com bottarga, e lagostas. Com as melhores pinças que já provei, servidas devidamente cortadas, de modo a facilitar as nossas vidas. Essa carne protegida pela casca grossa das pinças… Não sei descrever de tão boas.
Olhei para o lado, e veio a garçonete. Trazia ovas (não sei o peixe) grelhadas. Esse, sim, foi o último ato. Nem Shakespeare faria dramaturgia melhor.
Depois da sobremesa, no fim, fui até a cozinha, e meu olho se encheu de lágrimas ao gradecer ao chef.
Tenho pena de mim, por viver de memórias. Não é fácil chegar às portas do Paraíso, e ter de voltar.
SERVIÇO
Martinelli’s: Via Principe Amedeo, 18, 09124, Cagliari, Sardenha, Itália. Tel. +39 (070) 654-220. www.martinellis.it