Escrever é um ato que nos causa grande prazer, mas que também cobra um preço alto: o fato de estar registrado publicamente gera o desconforto de sempre podermos considerar ruim aquilo que já foi escrito, tanto do ponto de visto estético quando no que diz respeito aos fundamentos expostos.
Diante disso, é comum eu me deparar com um texto antigo meu na internet e sentir vergonha dele, por ser infantil e amador, chato e prolixo, e outras características indesejáveis. O tempo é cruel com as palavras, e os pensamentos.
Existe, porém, a possibilidade de no futuro, em novos escritos, a gente reapresentar as nossas ideias, revendo pensamentos anteriormente grafados. “Esqueçam o que escrevi” é uma frase atribuída a Fernando Henrique Cardoso (o que nunca foi comprovado) que marcou o seu período na presidência.
Acontece hoje comigo o mesmo. Mas, eu assumo esse desejo: Esqueçam o que escrevi.
Neste caso, porque eu mudo muito de ideia, e registros antigos podem não refletir meu pensamento atual. Essa teoria seguida de clamor me veio à cabeça devido ao seguinte fato.
CONHEÇA A BOUILLABAISSE
Certa vez, à mesa com um amigo gourmand, eu lamentei não encontrar no Rio uma boa Bouillabaisse – nem mesmo uma má. Simplesmente, não há.
Ele respondeu:
– Coma uma Leão Veloso!
Eu que gosto de retrucar, não só como combustível de conversa de botequim, mas também como exercício de retórica, disse.
– Por favor, não tem comparação. Nossa sopa de frutos do mar só foi inspirada na bouillabaisse. Não tem os peixes de fundo de rede que encontramos no Sul da França, que são fundamentais na receita. Do mesmo modo, nossa base de tempero não tem funcho e açafrão, é um refogado muito mais simples e insosso. Também nos falta aquele característico toque de Pastis, que empresta seu perfume ao prato. Alguns preferem usar vinho branco. Fora isso, não servimos com a rouille, esse tipo de maionese tradicional de Marselha. Tampouco fazemos o serviço clássico da “sopa de ouro”, como já foi definida a bouillabaisse por um famoso gastrônomo francês. Primeiro o caldo, com torradas e a rouille; depois os pescados. Por fim… não usamos a trilha, um dos peixes mais comuns no preparo original, na França chamado de “rouget de roche”. E tem mais: aqui usamos creme de arroz pra engrossar o caldo, na França são os próprios ossos, aparas e gorduras naturais dos pescados que cumprem esse papel – fuzilei a tese do amigo.
Com um balaio de argumentos como esse, meu amigo nem sequer tentou contestar, e encerramos ali o assunto.
Só que a internet é implacável, porque guarda muitos de nossos pensamentos antigos, e ultrapassados. Com desejo de comer uma bouillabaise, dei um Google e pesquisei: bouillabaise Rio de Janeiro.
E encontrei de cara uma reportagem com o seguinte título: “ Retrato de um Prato: a sopa Leão Veloso, a versão carioca da francesa Bouillabaisse”. (Para ler, clique aqui).
Até aí, tudo bem, se o texto não tivesse sido escrito por mim mesmo… foi em 2015, mas republiquei em 2020, sem mesmo fazer a correção. Tá certo que na crônica escrevi exatamente o que penso ainda hoje: “ Inspirado na Bouillabaisse, de Marselha, no sul da França, ganhou contornos tropicais, apostando na nobreza marinha – o camarão, o polvo, a lula, o cherne, os mexilhões (às margens do Mediterrâneo, a receita tradicional dos pescados usa os peixes mais baratos, “de fundo de rede”, como se diz).”
Mas, precisava ter cometido a leviandade da comparação logo no título, o resumo mais importante de qualquer artigo, reportagem, crônica ou algo que o valha?
Por isso, eu peço:
Esqueçam o que escrevi sobre a sopa Leão Veloso ser a ”bouillabaisse carioca”. Não penso mais isso: a versão marseillaise é muito melhor. Com todo o respeito ao diplomata, ao Rio Minho, onde nasceu a receita, e ao tal amigo.