Pensa rápido. Quando “comida” vem à sua cabeça, quais os dois primeiros países a lembrar? É possível que muita gente vá logo pensar em França e Itália, certo? E, lembrando da dupla vizinha, o que mais representaria a cultura gastronômica desses dois países? Os sabores mediterrâneos, acredito.
Então, imagine um restaurante que está localizado no litoral francês, a cerca de 50 metros da fronteira com a Itália, debruçado sobre as águas do Mar Mediterrâneo, na cidade de Menton. Pois além de estar neste terroir abençoado, onde brotam limões perfumados e cogumelos silvestres, porto pesqueiro onde diariamente peixes e frutos do mar fresquíssimos abastecem as cozinhas, o restaurante Mirazur tem um chef do primeiro time: o argentino Mauro Colagreco, casado com uma brasileira, aliás. Atualmente em terceiro lugar na lista da revista Restaurant, a meu ver favorito para a primeira colocação este ano, ele conquistou há poucos dias a sua terceira estrela Michelin, num processo de crescimento galopante: tinha só uma étoile em 2013, quando visitei o restaurante para ter uma das melhores refeições de toda a vida, uma degustação emocionante, bem dosada, no ritmo exato de serviço, com pratos ainda mais deliciosos do que lindos, um percurso irretocável, leve, equilibrado, com discurso “local e contemporâneo”, mas sem ser pedante nem com excesso de informações que muitas vezes nos cansam. Tudo fácil de comer e entender.
Desde então eu penso que ali temos tudo o que se necessita para um restaurante estar no topo, entre os maiores do mundo. Começando por um chef talentoso e carismático, passando pelo lugar realmente especial, com paisagem deslumbrante (no momento está em reformas, imagino que será ainda mais lindo), um serviço impecável. Ali, no exato encontro entre a França e a Itália, junto ao clima, aos ingredientes e ao cenário mediterrâneo.
Foi assim, e dá uma saudade boa, como são as melhores lembranças. Texto adaptado da reportagem que escrevi na época.
Chegando ao restaurante Mirazur, em Menton, um tango moderno tocava baixinho na caixa de som. E quem me dá as boas-vindas, em bom português, é Julia Ramos Colagreco, carioca casada com o chef argentino Mauro Colagreco, que através de sua cozinha delicada, inventiva, original e de técnica impecável, conseguiu uma proeza: ser um dos cozinheiros de maior destaque no cenário gastronômico da França atualmente, admirado por gente como o mais importante — e temido — crítico do país, François Simon (é amigo da família Troisgros e de vários chefs brasileiros, e visita o país com regularidade, para cozinhar, ou não). É um dos restaurantes que mais tem se destacado em prêmios internacionais, e atualmente, por exemplo, é o terceiro do mundo na lista dos 50 melhores do mundo no ranking anual da revista inglesa Restaurant. E continua com tendência de alta, ganhando posições ano após ano.
Ele não chegou ao topo por acaso. Meu almoço na casa, que integra a associação Relais & Château, seguramente foi uma das melhores refeições de toda a vida. Além de tudo, a vista para o mar e o centro antigo de Menton é belíssima. O salão envidraçado valoriza esse patrimônio, e o serviço tem uma simpatia rara de se ver na França, incluindo garçons argentinos, desses que adoram o Brasil, e gostam de relatar as suas visitas ao país.
No Mirazur a gente se sente em casa como em poucos lugares na Europa. Sem falar na seleção de vinhos, de pequenos produtores, quase sempre biodinâmicos, naturais, escolhidos a dedo.
— Estamos a apenas 50 metros da Itália, que começa logo ali — diz Julia, apontando para o mato que ocupa as encostas vizinhas ao restaurante, dono de uma horta produtiva que abastece a cozinha com muitos produtos frescos cultivados ali mesmo.
O lugar é mesmo especial, pelo simbolismo, e mais ainda pela oferta de ingredientes. Estão na fronteira mediterrânea da França com a Itália, como que um triângulo que une dois países com imensas tradições culinárias, e o mar que é sinônimo de riqueza alimentar. E para completar o cenário, a região é montanhosa, o que garanta também uma ótima oferta de ingredientes da terra, que se unem aos pescados: o limão siciliano, que é símbolo e o principal produto da cidade; os cogumelos selvagens, os queijos, as cabras e cordeiros; e na temporada de verão, lindas hortaliças: as flores de abobrinha, os tomates, as ervas frescas…
Ainda impressionado com a vista, recebo o amuse bouche, com vários bocadinhos de apresentação impecável, entre eles uma anchova crua, fresquíssima, depositada sobre uma espécie de maionese caseira, cujo sabor até hoje está gravado na memória.
Com champanhe, a melhor maneira de se começar uma refeição, fica ainda melhor. E se for o Henri Giraud Grand Cru Hommage, joia de Aÿ, feito em homenagem a Francois Hemart (1625-1705), tudo pode ser definido como perfeito. Sobre a mesa havia ainda outro petisco: um crocante de alga.
Logo em seguida, ainda como parte da diversão inicial de boca, mais delicadeza e belezura, e louça especial, nesta saladinha para se comer em uma só bocada: uma saladinha de ervilha, com a fava e o petit pois, tudo fresquinho, e refrescante.
Delicadeza é algo fundamental, e o pão da casa, quentinho, é servido com azeite aromatizado com limão siciliano (Menton é famosa por seus citrons) e uma folhinha com trecho de um poema de Pablo Neruda (traduzido para o francês), “Ode ao pão” (para ler o original em espanhol, clique aqui; para a versão traduzida para o português, clique aqui; e para ouvir Mário Viegas dizendo o texto, no YouTube, clique aqui: vale a pena, é linda o recital).
Chega então uma ótima forma de prosseguir: um lindíssimo Riesling da Alsácia. Desses que vão otimamente bem com a comida.
O primeiro ato foi uma espécie de canelone, cuja massa era uma lâmina finíssima de pera, que envolvia uma ostra crua, conjunto temperado por um creme de échalote, cebola ovalada e de sabor mais delicado. Ficou ainda mais perfeito pela ilustre companhia do Riesling, intenso, fresco, mineral.
Logo depois, chegou uma saladinha das mais lindas e deliciosas que já pude provar, combinando vagens verdes e amarelas, flor de mostarda, cerejas frescas e cebola roxa, com um toque de limão siciliano e azeite.
E que tal uma cumbuca de bottarga com batata, molho de café, abóbora, alcaparras e azeite, também temperado com café? Inusitado e delicioso, com todos os elementos que um prato precisa, distribuídos com equilíbrio entre ingredientes de sabor e personalidade marcantes. Cremosidade, texturas diversas, a salinidade marcante da bottarga, e seus tons marinhos, e da alcaparra.
Divino, ainda mais acompanhado de um copo do Domaine de Bellivière Les Rosiers, intenso e mineral. Tudo valorizado pela louça que colabora para uma apresentação impecável de cada prato, não houve uma receita que destoasse.
Enquanto isso, admiramos a paisagem, entre um prato e outro, entre uma garfada e outra.
O foie gras com daikon e consomê de pato perfumado com verbena estava sublime.
Eles foram subindo o tom. Serviram este ótimo branco provençal, perfumado como os campos de lavanda que marcam a paisagem da região, não muito longe dali de Menton.
O mesmo adjetivo pode ser usado para definir o charbonnier, um raro cogumelo colhido nas montanhas que envolvem Menton, servido com delicado creme de alho e flores de cebolinha francesa.
Um filé de salmonete boiava sobre um caldo de cebolas, fumé de tamboril com sálvia e tripas de bacalhau fresco. Na taça continuava brilhando o delicioso Henri Milan.
Chegou a hora, então, do primeiro tinto da tarde. O Faustine Vieille Vignes 2011, de Ajaccio, na Córsega, do Domaine du Comte Abbatucci: pura delicadeza e intensidade, reunindo elementos terrosos e frescor, com textura macia, cheio de nuance e complexidade. Assim como o prato que ele escoltou.
Era um magret de pato, com molho de laranja em redução de cenoura, era acompanhado de mousseline de cenoura, umas fatias de cenoura tostada, e uma cenoura branca tamanho mignon, com ervilhazinhas e uma folhinha com perfume mentolado e aparência de samambaia. Uma lindeza.
O carrinho de queijos é uma tentação.
Em vez de um prato de queijos, recebi uma lâmina cristalina e crocante, envolvendo um pedaço de Munster, temperada com cominho e mel de acácia.
Uma pouco doce combinação de ruibarbo com morangos, amoras e outras frutinhas frescas, além de sorbet de ervas selvagens foi o penúltimo passo.
Encerrei com dois macarons, um de limão, outro de erva-mate, como se simbolizassem a união de Menton e Argentina, ao lado de uns “gravetinhos” de chocolate, servidos sobre musgo fresco.
O Mirazur é apenas a mais deliciosa razão para se ir até Menton, mas há muitas outras, a começar pela própria orla, com praia de piso pedregoso, repleta de bares, cafés, restaurantes e hotéis, além de um cassino movimentado. Entre os lugares mais interessantes da cidade para uma refeição praiana está o restaurante La Mandibule, raro endereço especializado na cozinha das Ilhas Reunião, com tempero indiano e pitadas tailandesas na cozinha francesa, resultando em receitas apimentadas. E vale, ainda, passar pelo centrinho antigo de Menton, com suas construções bem conservadas. Só não dá para não ir ao Mirazur.
SERVIÇO
Mirazur: 30 Avenue Aristide Briand, Menton. Tel. (33) 4-9241-8686. mirazur.fr
P.S. – Este texto é uma adaptação aumentada de um reportagem sobre esta região litorânea da França, incluindo Èze. Para ler a matéria, clique aqui.
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