Numa bela tarde de sol na Maison de l’Espérance o champanhe da casa aguçava as papilas, e o verde da paisagem invadia o salão envidraçado. Os pães quentinhos já tinham dado as boas-vindas, com ótima “beurre de baratte”, assim como as borbulhas, feita especialmente para o chef Marc Meneau, que comanda o restaurante, dono de duas estrelas no Guia Michelin, na bucólica Saint-Père-Sous-Vézelay, bem próxima ao vilarejo de Vézelay, no alto de um monte que tem lindos panoramas da região. Chega, então, um dos pratos mais famosos do chef. A ostra clássica de Marc Meneau, divina, preparada com gelatina feita com a água da ostra, folhinhas de agrião e, lá embaixo, um escondido creme picante de echalote. Sem palavras.
O que se seguiu foi uma das melhores refeições de toda a vida, com destaque, ainda, para este lindos ovos nevados, o que nos faz entender as razões de tantos brasileiros do primeiro escalão de milionários do país frequentar tanto este restaurante. E também, assim, damos razão à teoria de que na França os restaurantes com duas estrelas Michelin quase sempre superar os de três estrelas, porque estão naquele esforço brutal de conquistar a honraria máxima da gastronomia mundial.
Nesta semana em que passei por lá pude comprovar isso. O almoço no Marc Meneau foi o melhor, entre todas as refeições. E não faltaram três estrelas no caminho. Um jantar de gala, no Relais Bernard Loiseau em Saulieu, às portas do Parque Natural Regional do Morvan, que até então tinha as três estrelas. Um almoço sublime na Maison Lameloise. Outro jantar não menos que magnífico, no La Côte Saint Jacques. Em comum a todos, além do trio de estrelas, está também outra chancela de luxo: são membros da associação de hotéis Relais & Châteaux, bem como outros ótimos restaurantes visitados, como o l’Abbaye de la Bussière e a Hostellerie de Levernois, neste caso com uma estrela Michelin. Foram refeições impecáveis. E Marc Meneau serviu a melhor de todas.
As regiões vinícolas que produzem os melhores vinhos do mundo são tradicionalmente lugares de grandes concentrações de excelentes restaurantes, desde esses estrelados, até os estabelecimentos mais simples, que servem os pratos típicos locais, a ótimos preços. Como acontece no Piemonte, na Itália. A Borgonha tem uma das maiores concentrações de estrelas Michelin do mundo.
A região da Borgonha está entre duas referências da gastronomia francesa, duas cidades que podem servir de porta de entrada ou saída da região, conectadas a Paris por TGV: Dijon, ao norte, e Lyon, ao Sul. Entre uma e outra estão as denominações da Borgonha, espalhadas ao longo do curso do Rio Saône e o traçado da estrada A-6. Da capital mundial da mostarda até a cidade que é sinônimo da mais alta classe gastronômica da França são 197 deliciosos quilômetros, um roteiro de deixar qualquer amante da boa mesa enlouquecido, circuito que inclui, ainda, a região de Beaujolais. (Nota do editor: O texto é de 2017, feito para a revista Vinum Brasilis: Bocuse, como se sabe, morreu em 20 de janeiro de 2018. Neste link da Wikipedia eu deixo sua breve biografia em português).
Visitar as vinícolas é um programa natural, mas é preciso ficar atento. Nem todas recebem visitas, muitas exigem agendamento, e as mais famosas e com vinhos mais caros, como Romanée-Conti e Hanry Jayer – produtor que bateu o próprio domaine de Aubert de Villaine como vinho mais caro do mundo. Para visita-los só com uma rede de contatos fortíssima. Mas a foto clássica do vinhedo mais famoso do mundo, cercado de pedras como é praxe na região, é praxe de nove em cada dez visitantes.
Entre as vinícolas que recebem visitantes com boa estrutura estão o Château de Pommard, que promove degustações, visitas guiadas, e onde encontramos uma espetacular galeria de arte contemporânea; e o Châteaux Long-Depaquit, na área de Chablis.
Uma visita obrigatória é a Beaune, epicentro do turismo na Borgonha com seu simpático centrinho histórico, e o seu grandioso prédio, que é ícone da cidade e da região, Hospices de Beaune, onde acontece o famoso leilão anual de vinhos. Quem gosta de mostarda não pode deixar de fazer o tour pela à Fallot, fábrica da última mostarda tradicional da Borgonha, feita à moda antiga desde 1840, com vinho, mas com técnicas modernas. Os olhos chegam a arder, e a lojinha ao final tem mostardas incríveis, entre as melhores do mundo, algumas delas temperadas com especiarias, frutas e outros condimentos e ervas.
Um programa diferente, e imperdível para enófilos, acontece em Meursault, refer~encia mundial em vinhos brancos com passagem em carvalho, um modelo que o planeta inteiro tenta copiar, quase sempre sem sucesso. Ali, na Art du Tonneau, é possível aprender como se faz uma barrica, numa aula prática, onde participamos do processo, muito divertida e também didática. Para ler uma reportagem maior sobre o assunto, a primeira coluna #TBT, na semana passada, clique neste link.
Vale deixar Lyon para o final, explorar seus restaurantes e pratos típicos. Afinal, Lyon é a única cidade de toda a França a ter uma gastronomia típica para chamar de sua, a exemplo de Nice. Porque geralmente temos a cozinha provençal, bretã, bordalesa. Mas só duas cidades tem a sua tradicional gastronomia própria; Lyon, e sua “cuisine lyonnaise”, e Nice, com a sua “cuisine niçoise”. É tempo ainda de ver em ação o maior cozinheiro vivo, monsieur Paul Bocuse, com seu restaurante no número 40 do Quai de la Plage, em Collonges au Mont d’O, arredores de Lyon, desde 1965 ostentando suas três estrelas Michelin na parede.
Esticada clássica, em especial entre brasileiros admiradores do trabalho de Claude e Thomas Troisgros, é até Roanne, a pouco mais de 80 km de lá. Sim, ali está outro restaurante mitológico da Borgonha: a Maison Troisgros, na localidade de Oaches, fundada por Jean Baptiste, avô de Claude – e atualmente comandado por seu pai, Pierre, e Michel, seu irmão. Desde 1968 tendo em suas paredes as cobiçadas três estrelas Michelin. No lugar, assim como em grande parte dos restaurantes estrelados da região, também funciona um pequeno e exclusivo hotel de charme. Melhor ficar por lá mesmo. Ao menos uma noite. (Nota do editor: o texto é de 2017, feito para a revista Vinum Brasilis, como já foi dito: Pierre Troisgros, como se sabe, morreu em 23 de setembro do ano passado. Neste link da Wikipedia eu deixo sua breve biografia em português).
Voltar de uma viagem à Borgonha impõe um sofrimento ao turista, é preciso alertar: ficamos mais exigentes com a comida e com o vinho. E dá uma saudade danada. Mas vale a pena, e como vale.
2 commentários
Não tenho condições emocionais de ler um post como este. Não vou dormir à noite e você é o culpado. Excelente texto. Parabéns
A Borgonha realmente é um sonho. Em breve eu volto.