Foi assim.
Aquela linda tarde de sol típica do outono carioca, dessas que fazem até a gente esquecer de todo o resto, dos problemas, das contas. No caso, até a chegada ao Laguiole, no MAM, chega a ser antológica nessas condições climáticas perfeitas. Chegamos à Praia de Botafogo fitando o Pão de Açúcar, vamos contornando a baía, passamos pelo Obelisco e deslizamos na pista rápida até chegar ao museu modernista também na arquitetura, imponente, suas colunas e o grande vão, onde saltamos do carro.
Damos antes até uma espiada na escultura de madeira, pura arte brasileira, que enfeita o hall de entrada. Pronto. Chegamos ao restaurante, agora rebatizado de LaguioleLab (explico aqui o conceito). Para mim, um dos programas mais entusiasmantes é ir ao restaurante que tem na cozinha o chef Ricardo Lapeyre. No Laguiole, pelo conjunto da obra e até pelo simbolismo – foi o restaurante onde ele foi revelado, onde ganhou seus primeiros prêmios e fez fama -, a experiência ganha ainda mais simpatia.
Aí, somos recebidos pelo Lima, dos melhores maitres que conheço, elegante, eficiente e discreto, com espumante e um apanhado de aperitivos: no caso de ontem eram ratatouille, rillette de namorado com picles, escabeche de arraia (coisa boa!) e um filé mignon curado, serviço que vem sob inspiração do bufê do Laguiole, os eventos estão entre os negócios mais rentáveis da casa.
E vem justamente desses eventos algumas das melhores pedidas no menu de preço fixo (R$ 168), que dá direito a todo o cardápio do dia, em pequenas porções, mais os clássicos do Laguiole: ravióli de beterraba com queijo de cabra e castanha-do-pará; a cavaquinha grelhada com risoto de quinoa real e beurre blanc (mais R$ 30, vale pedir); o arroz de bacalhau; o arroz de rabada (imperdível) e o chateaubriand Rossini (mais R$ 30). Qualquer prato dessa lista pode ser repetido, quando vezes o cliente quiser. Vez ou outra há alguns especiais do dia, explorando ingredientes mais raros, coisas deliciosas, servidas meio que na boca miúda, para os clientes mais assíduos.
Voltando à tarde de ontem. Durante o serviço daquele citado couvert, que tinha ainda cestinha de pães com um digníssimo brioche, o chef veio apresentar o menu.
– Outro dia comprei 45 leitões para um evento. Vou servir para você a bochecha – disse ele, emendando – Também guardei 45 línguas de leitão. Quando for fazer te chamo.
– Que maravilha. E a cabeça, fez o que com a cabeça? – Respondi perguntando.
– Ah ah ah ah ah. Guardei também, vou servir para você. Era surpresa.
– Aí eu vou chorar.
De fato, chorei.
Mas antes das iguarias suínas provei um belo pargo cru, com bem pensado vinagrete de caqui.
E ainda tive um momento de glória, quando provei o impecável guioza de lagosta, com perfume de capim-limão e toque de caviar Mujol (repare nos molhos do chef, são sempre um elemento de destaque nos pratos, como é neste caso).
Pois, sim.
Veio a bochecha de leitão, lambuzada em caldo de porco. Um pequeno pedaço, com três texturas, algo quase cremoso, uma carne de delicadeza marcante, realçada pelo molho untuoso: tem a carne, aquela maciez absurda; a gordura, ainda mais; e a pele, macia como se fosse um tecido de seda, uma espécie de oração comestível, como se fosse uma hóstia.
Pedi para repetir. Meus olhos encheram de lágrimas. Tirei os óculos para mostrar ao chef a emoção.
Aí, veio o prato que motivou o convite do chef, no dia anterior, quando me disse, sabendo que sou apreciados de miúdos e cortes ditos menos nobres, que para mim são a realeza da gastronomia: o rabo, o pé, o focinho, a línguas e outras partes que exigem um preparo lento e cuidadoso.
– Estou com uma língua aqui, vem provar.
Isso para mim é uma ordem, mas ele só revelou parte da refeição. Nada disse do leitão.
A língua como pode se ver estava linda.
Limpei o prato com o brioche, coisa que sempre faço, porque como disse os molhos estão entre os destaques nos pratos do Lapeyre, e deixar ainda que pouco na louça é desperdício imperdoável.
Daí, veio a miúda porção de cérebro do leitão, à milanesa, de tão gigante sabor. Não sei explicar o que foi isso.
Como dá para ver, perfeitamente empanado, em farinha panko. Imagine uma manteiga à milanesa, com sabor que lembra o timo (molleja, em espanhol;(ris de veau, em francês; sweetbread, em inglês; animielle, em italiano), cremoso a ponto de derreter, lambuzando a boca com um sabor inimaginável. Um toque de flor de sal, purê de cabochá e tonkatsu)Daí, no final, para quebrar um pouco, um pequeno pedaço de limão taiti cumpre a nobre missão de encher o palato de acidez.
Chorei de novo. Pedi para repetir. E novamente vieram lágrimas.
– Comemos tudo lá na cozinha, fez sucesso com a brigada – disse o chef, rindo, meio que provocando, dizendo os olhos algo do tipo “Tá achando que é assim, que vai comer duas porções de cabeça de leitão no mesmo almoço? A vida não é assim não, meu amigo.
Eu ri, e no fundo sei mesmo que não merecia essa iguaria em dose dupla não no mesmo almoço, eu acho que não mereço sequer no mesmo ano. Talvez só mereça uma vez na vida, ou nem isso.
Perguntei se qualquer poderia pedir esses especiais, de leitão, bem como outros.
– Bruno, você sabe, tudo é negociado. Combinando com antecedência vamos atrás dos ingredientes e preparamos os pratos encomendados – diz o chef Lapeyre, que já me serviu um coelho que eu mesmo comprei e entreguei a ele (os rins, empanados, com mostarda, foram o ponto alto do almoço; além de ter feito, sob encomenda, faisão, entre outros pedidos que já o vi fazer, como um jantar para a Confraria dos Companheiros da Boa Mesa, que certa ocasião fizeram, no Laguiole, o histórico Banquete de Vertus, que Antoinie Careme produziu em 1815, quando Napoleão recebeu o Czar Alexandre (para ler mais, clique aqui).
Sei que depois pedi só uma delicada pavlova de frutas vermelhas, com toque de manjericão. Como se sabe, o doce foi criado em homenagem à bailarina russa Anna Pavlova, e um almoço como esse, no Museu de Arte Moderna, só poderia terminar mesmo sob inspiração artística. A cozinha do Lapeyre é algo perto disso, um suspiro de felicidade que realmente me comove. Um sopro de alegria.
Se puder, prove ainda a escultural e icônica torta MAM, de chocolate; o pain perdu, com toque de framboesa; o entremet e o Paris-Brest, outro doce cheio de simbolismos; uma roda inspirada numa corrida de bicicletas.
A cozinha é uma arte repleta de histórias e referências. O almoço mudou o pensamento, virou uma pluma, como se o cérebro suíno inspirasse o raciocínio. Tudo fica melhor. Até a tarde ficou mais linda, e claro, saí já quase ao entardecer. Resolvi ir desfrutando disso, e andei até o Castelo, cruzando a passarela que liga o Santos Dumont ao Centro, com Cristo e Pão de Açúcar à esquerda. Pensei até que não merecia.
No fundo é um erro. Todos merecemos. E esse naco de felicidade está a nosso alcance, ali no MAM. Almoçar ali, acredite, é uma forma de Nirvana. É um clímax. Já estou pensando em quando voltar.
Não sei, só sei que foi assim.
Obrigado, amigo Lapeyre. É uma sorte essa minha. Obrigado. Já volto. Um abraço.
LAGUIOLE: MAM – Museu de Arte Moderna; Av. Infante Dom Henrique, 85, Glória, Rio de Janeiro. Tel. (21) 2517-3129; 98744-8679; 99575.6627. Reservas: reserva@laguiole.com.br ou contato@laguiole.com.br http://www.bestfork.com.br/laguiole/index.php