Este é mais um capítulo da série: livros para devorar.
Esse ano a Portela não foi bem na Avenida. Na verdade, foi muito mal, e poderia até ter sido rebaixada. Mas, se tem um lugar que a escola não desafina nunca é a cozinha. Mérito de suas simpáticas e talentosas integrantes da Velha Guarda, além de sambistas de respeito, quituteiras renomadas, com legiões de fãs. Isso rendeu até um livro, muito bom por sinal.
A música “Batuque na Cozinha”, de Martinho da Vila, é um samba bem humorado, que termina em confusão. Mas este livro “Batuque na Cozinha: As receitas e as histórias das Tias da Portela” (Casa da Palavra / Editora Senac Rio), de Alexandre Medeiros, ao contrário, é pura harmonia, apresentando histórias e comidas das tias da Portela, as integrantes da Velha Guarda da Escola, que cantam, dançam, batucam e cozinham muito bem.
O livro, editado em 2004, está fora de catálogo, mas comprei facilmente pela internet, com direito a dedicatória e assinatura do autor (não para mim, é claro). Custou R$ 11 (com frete, R$ 23).
São quatro as estrelas da publicação: Tia Doca, que vai de tripa lombeira, sopa de entulho e a famosa sopa de ervilha de seu pagode dominical; Dona Eunice, que dá a receita da galinha ao molho pardo desde o abatimento da ave; Dona Neném, que apresenta o preparo da famosa feijoada portelense; e Tia Surica, que aposta no mocotó, na bacalhoada e também conta como faz sua feijoada no seu “Cafofo”.
O enredo funciona, o livro é agradável e o desfile de páginas vem numa boa cadência entre receitas e causos, num repertório bem editado das duas coisas. Pura cadência!
Tia Eunice, por exemplo, começa assim a receita da galinha à cabidela: “Mate a galinha. Tire toda a penugem e passe um esfregão com água e limão para retirar a gosma das juntas.
Coloque num prato fundo ou pote vinagre com sal.
Depene o pescoço da galinha e faça ali um corte para extrair o sangue. Deixe o sangue escorrer para o pote de vinagre e sal. Mexa para não coalhar e reserve.
Corte a galinha em pedaços – o peito em quatro, por exemplo – e tempere com sal e pimenta-do-reino.
Deixe descansar um pouco.”
Um trecho da receita da Sopa de Ervilha do Pagode da Tia Doca: “A sopa de ervilha da Tia Doca não passa nem pelo liquidificador nem pela peneira. As ervilhas secas, compradas a granel na feira ou no acolhedor Mercadão de Madureira, vão se desmanchando no caldeirão onde ficam cozinhando desde a manhã até o meio da tarde de domingo. No início da noite, o caldeirão é tampado, envolto e amarrado em panos de prato. Segue de carro, fumegante, até o Clube dos Carteiros, próximo à estação de Oswaldo Cruz, onde a sopa é servida em copos de plástico para ‘rebater’ a cerveja gelada. Enquanto isso, vai rolando uma das mais autênticas rodas de samba do Rio de Janeiro – ou seja, do mundo.”
O livro vai passando assim, deliciosamente. Daí, eu me deparo com um prato que não conhecia: Lençol Recheado.
“Segundo Tia Eunice, esse prato é simples de fazer mas carece de um ingrediente cada vez mais raro nos dias de hoje: um açougueiro camarada. “Eu hoje tenho até medo de pedir para cortar a carne em forma de lençol. Com aquele facão perigoso, tá arriscado eles quererem enfiar a faca na gente”, ela ri. Nos bons tempos, Tia Eunice contava com a boa vontade de um açougueiro de Rocha Miranda, já falecido: “Ele era muito antigo no lugar e cortava a carne direitinho, bem fininha, fazendo o lençol. Aí era só ir recheando e enrolando a carne”. Bom, para quem conhece um açougueiro camarada, ou tem perícia no manejo da faca de corte, aí vai a receita.”
Recomendo que leiam. E comam.