O (bom e) Velho Adonis, a casa do João, Patrimônio Cultural Carioca: uma casa portuguesa muito da carioca, aos 70 anos

 

João Paulo Campos comprou o Adonis em 2019 – Foto de Bruno Agostini®

O João é popular, e sua casa vive cheia. O prefeito Eduardo Paes de vez em quando aparece, para uma rodada de chope e petiscos, como quando inaugurou a placa de Patrimônio Cultural Carioca, que diz: “Aberto em 1952 por um imigrante português. Famoso pela velha torre de chope em bronze. Sua especialidade é o bacalhau”. Eu faria uma observação: o bacalhau é apenas uma das especialidades, porque o polvo com bacon, o camarão à Matosinhos, o chouriço na bagaceira, a galinha à cabidela e o angu à baiana, entre outras coisas, também são. Assim como o carisma e a hospitalidade do dono.

A placa foi entregue pelo prefeito Eduardo Paes no ano passado – Foto de Bruno Agostini®

Já o repórter Chico Regueira, da TV Globo, especialista em carioquices, só conheceu o João em 24 de junho de 2019. É a data do renascimento desse reduto clássico da boemia do Rio, quando o tradicional boteco de esquina, pertinho do Cadeg e no coração da comunidade portuguesa da cidade, reabriu as portas, ainda timidamente, com elas meio arriadas, só para os amigos, e os amigos dos amigos. Chico, que foi levado pela Luiza Souza, do Bar da Gema, hoje trata o trata como irmão, e vice-versa.

O chope é servido como manda a tradição germano-carioca, na caldereta, ou schnitz – Foto de Bruno Agostini®

Moacyr Luz, o Moa, capitão do Samba do Trabalhador, a melhor roda da cidade, é frequentador assíduo, e amigo da casa, e dele. Fez até uma música, que começa assim: “João Paulo conhece os segredos / Domina os temperos / Para frutos do mar / Mexilhão dá no rochedo / Eu como sem medo / Que nem caviar / Mas, João Paulo, na verdade / É bom de bacalhoar / Pode ser à lagareira / Ou até Gomes de Sá”.

Polvo com bacon: petisco j´[a nasceu clássico – Foto de Bruno Agostini®

– Eu costumo a brincar que, quando você passa por um bar onde está escrito “sob nova direção”, pode correr desse lugar, já está falido, só o dono é que não sabe. Mas, acontece que eu conheci uma exceção – diz Moacyr Luz, que, na música que fez ao amigo, pergunta e responde: “João, está por onde? Adonis, então, o que será?”.
“João do Adonis” é nome da música do Moa. Porque todo mundo já matou a charada: falávamos do (bom e) Velho Adonis, que vive a sua melhor forma prestes a fazer 71 anos. João agregou a referência etária ao nome quando reabriu o bar, a exceção a que Moacyr Luz se refere.

O monumental polvo à lagareiro do Adonis – Foto de Bruno Agostini®

– O bar abriu sob nova direção e, com todo o respeito aos meus antigos amigos, os donos, o bar ficou melhor. Sob nova direção, é um sucesso. Não é fácil você imaginar em um período tão agreste, violento às vezes, a pessoa se despencar da Zona Sul para Benfica num calor insuportável, se não tiver um grande motivo. O Adonis é o extrato do bom gosto do paladar, mas em um botequim. É a tradução carioca do sofisticado Satyricon, do Antiquarius, do Fasano. Só que no Adonis você anda de chinelo, e come o melhor bacalhau, o melhor polvo. Além das melhores comidas tradicionais de bares cariocas: carne-seca com abóbora, cozido, feijoada, rabada com agrião, dobradinha, galinha à cabidela. É impressionante – continua o compositor (observação: o chef do Adonis é Antônio Rodrigues, com 25 anos de Satyricon).

 

Açorda de frutos do mar, em versão cumbuquinha – Foto de Bruno Agostini®

João Paulo Campos, cearense de Reriutaba, chegou ao Rio em 1999. Apesar de cozinheiro de mão cheia, fez carreira nos salões – dos mais elegantes, que se diga. Além do Antiquarius, também foi maître do Fasano al Mare (entendeu os três exemplos do Moa?). Passou um período em Angola e voltou ao Brasil para abrir, em 2011, a Casa do Galeto, no Jacaré. Esbanjando duas coisas que ninguém resiste, simpatia e comida boa, João é como um ímã, atraindo (muitas) pessoas até o seu bar – que vende mais de 10 mil litros de chope por mês. Assim, foi colecionando amigos, de todas as classes: de políticos e empresários a artistas, jornalistas e operários.

Os bolinhos, entre as pedidas inevitáveis do Velho Adonis – Foto de Bruno Agostini©

– Sou apaixonado por restauração: de relógios, carros, móveis. E tem gente que faz algo muito impressionante que é a restauração de restaurantes. A recuperação de casas que proporcionaram momentos espetaculares no passado, que fizeram um grande nome, mas em algum momento se tornaram menos atraentes. Aí, chega alguém como o João, que pega o velho Adonis e faz ele brilhar como nunca. É criar novos momentos de alegria – diz o empresário Roberto Hirth, membro da Confraria dos Companheiros da Boa Mesa, responsável pelos serviços gastronômicos do Itamaraty (foi quem serviu o banquete aos convidados estrangeiros na posse do Lula).

Acepipes: torresmo, tremoços, azeitonas e polvo com bacon, além da potente pimenta da casa – Foto de Bruno Agostini®

Apesar de nascido a milhares de quilômetros de distância, João é carioca da gema, desses que desfilam pela Mangueira, vão a São Januário torcer para o Vasco e não dispensam uma praia e um bom boteco bebendo uma cerveja. Tão da gema, que criou até um pastel de ovo, além de uma renomada frigideira de polvo, com bacon, alho e uma boa talagada de manteiga, pratos que João lançou quando reabriu a casa, com menu que preservou o original, mas incorporou muita coisa. Novidades muito bem colocadas, por sinal, com receitas vindas de seus tempos de Antiquarius, outras típicas dos botequins da área, e ainda algumas de suas criações. João não é só anfitrião, o rei do salão, ele é fera na cozinha também, e prepara banquetes famosos em sua chácara em Maricá: galinhadas, feijoadas e outros quitutes brasileiríssimos.

Camarão à Matosinhos, homenagem às marisqueiras portuguesas da Cidade do Porto – Foto de Bruno Agostini®

Ali, seja no balcão, nas mesas do salão refrigerado ou mesmo na calçada, podemos comer trivialidades encontradas em qualquer esquina, como tremoços e azeitonas pretas. Mas também pratos de alta classe, com os mais lindos tentáculos de polvo, as mais altas postas de bacalhau, e as mais vistosas cumbuquinhas com acepipes deste Hemisfério. As empadas, que ilustram a vitrine aquecida, se derretem na boca, enquanto o torresmo explode (ele pode ser vendido no pires de café, em versão mini, ou no prato de sobremesa, um pouco mais robusta).
De bacalhau, fato, há um festival, sendo o ingrediente que mais aparece no menu, de longe: das punhetas e bolinhos, que integram a parte chamada “Besteirinhas Portuguesas”; às açordas e pastéis: tem até gurjões de bacalhau, que alguns chamariam de pataniscas, salada e até uma sopa (com ovo).

Muitos litros de pimenta da boa enfeitam o salão – Foto de Bruno Agostini®

Mas não se trata, com certeza, de uma casa portuguesa. É carioca, e segue o calendário diário dos botequins mais tradicionais da cidade, servindo alguns pratos que estão aos poucos desaparecendo. Terça tem galinha ao molho pardo. Quinta é dia de dobradinha com feijão branco, dessas que, a gente delira. Sábado é a vez de angu à baiana, que atrai apreciadores fiéis, e acaba cedo.  E, no domingo, naturalmente, é o dia do cozido, farto e multicolorido. Muitas vezes, tudo isso acaba cedo, porque há adoradores dessas receitas, que andam sumidas dos menus do Rio (as três primeiras, principalmente). Completando o menu semanal, temos ainda a rabada das quartas e a feijoada das sextas. Todos, nesses dias, são servidos nas cumbuquinhas, como petisco – obrigatório pedir as do dia. Menos segunda-feira, que é a “Folga da rapaziada”, conforme escrito no menu. Por rapaziada João chama todo mundo: de políticos e músicos, a jornalistas e empresários. E fica amigo de todos com rara facilidade.

As empadas imperdíveis ficam expostas na vitrine refrigerada – Foto de Bruno Agostini

– O João tem o dom de estender a mão pra amizade, como dizia Vinícius de Moraes, no primeiro instante. Faz parte de sua doçura, acho que é a sua batida de maracujá. É um grande pacificador, e assim o Velho Adonis virou esse lugar, uma concentração de gente boa, ponto de encontro da cidade. É um ponto gravitacional, onde bebemos o melhor chope da cidade. É como a verde-rosa: atrás do Adonis só não vai quem já morreu. Ou o ‘hino’ mineiro: quem te conhece não esquece jamais – exalta o jornalista Chico Regueira, quem nem olha o menu.  – Eu nem tenho pratos preferidos. Mandem o que quiserem, é tudo sempre muito bom! – diz o responsável pela excelente série “A Roda: Raízes do Samba”, com excelentes entrevistas musicais.

O Malandrinho dos 70 – Foto de Bruno Agostini®

Ao se tornar septuagenário, no dia 24 de junho de 2022, o Adonis, lançou um prato novo para marcar a data:
– Em comemoração aos 70 anos do bar Velho Adonis, estamos lançando um prato muito comum em Portugal: arroz malandrinho, cozido no molho de tomate fresco com polvo, camarão, bacalhau fresco e couve. E foi batizado carinhosamente como Malandrinho de 70, e se não gostar, setenta de novo – convidou, no dia, os amigos.
O Adonis vem acumulando prêmios e condecorações. Além do título de Patrimônio Cultural Carioca, concedido pela Prefeitura, ganhou placas, pratos, troféus e diplomas como melhor do Rio, em categorias como “Melhor Boteco” e “Melhor `Petisco”.

Louros concedidos com justiça à casa, por conta de vários aspectos. Entre eles um ícone desde a reabertura: o polvo com bacon, um dos acepipes mais cultuados da cidade, uma receita do tipo “mar e montanha”, que faz sucesso desde o seu lançamento, na reabertura do bar. Também entrou na lista de melhores bares do Brasil. Poderia vencer em muitos outros quesitos, como melhor chope, melhor restaurante português, melhor bolinho de bacalhau. O nome disso é merecimento.

– Nosso prato mais vendido é o polvo à lagareiro – lembra João.

Mostrando o seu DNA carioca, O Adonis serve um restaurador feijão amigo (gordo e saboroso), pastéis e uma porção chamada Companhia do Chopp (provolone, azeitona, salame e ovo de codorna) e frango à passarinho. São itens que não podem faltar em boteco que se preze, da Zona Sul à Zona Norte.

Entre os pedidos mais substanciosos, o repertório de pratos – sempre muito bem servidos – apresenta um notável contrafilé à Oswaldo Aranha, assim como uma sopa Leão Veloso, e um camarão à milanesa com arroz à grega, trio que compõe o receituário típico dos restaurantes e bares tradicionais do Rio.
Da Bahia, além do angu, serve moqueca (incluindo uma de bacalhau com camarão), e de Minas apresenta o seu carré com tutu e couve. De seu primeiro restaurante, a Casa do Galeto, ele traz a expertise no preparo do franguinho desossado, e de um risoto “malandrinho”, úmido, com molho de tomate.

Inventou um pastel de ovo, e de seus anos de Antiquarius, incorporou algumas receitas da cultuada casa da família Perico: o bacalhau nunca chega, com esse nome porque uma porção não basta (com batata palha, presunto e ovo mexido, quase uma carioquíssima guarnição à francesa com o peixe) e a cataplana de frutos do mar, a fumegante panela de cobre, com polvo, lula, camarão e peixe), por exemplo.

Cozinhar mesmo, João cozinha em sua chácara, em Maricá, onde cria, inclusive, algumas de suas especialidades: a galinhada.

– No ano passado o Rio sediou uma conferência de jornalismo investigativo. Foram quatro dias de evento, e na quinta estávamos livres, e não sabíamos o que fazer com os 78 estrangeiros que participavam. Eu e minha mulher pensamos: vamos pedir para o João fazer alguma coisa. Na quarta, pedimos a ele, que topou. Na quinta, ele passou o dia mandando mensagens com foto para a gente, dizendo: olha aqui, indo para a panela. E chamava todas as galinhas pelo nome – lembra Chico Regueira, sem conter o riso, mas fazendo questão de lembrar – E, no fim das contas, fez uma senhora galinhada, para 80 pessoas, assim, de um dia para o outro.

Assim além de colecionar amigos, vai abrindo botequins pelo caminho: tem a precursora Casa do Galeto, no Jacaré; o Dom Pedro, inaugurado em 2014, pertinho do Adonis; e em breve vai abrir o Che Gusto, um italiano de comida rápida, no Cadeg.

– Quando eu abri o Dom Pedro, eu queria um bar parecido com o Adonis, porque era isso o que eu gostava – lembra o João, que fez mais do que isso. Fez renascer o Adonis. E, ainda por cima, melhor do que era antes.

* Este texto foi escrito para a Revista Rio Já.

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