Vinho da Semana: Anarkia Tannat 2020, um uruguaio que alia raça ao refinamento, uma espécie de Arrascaeta engarrafado

O vinho é frutado, elegante e gastronômico – Foto de Bruno Agostini®

O vinho é um produto agrícola, é fruto do trabalho de homens do campo. É algo biologicamente simples: suco de uvas fermentado. Claro que, a partir disso, temos uma série de caminhos a seguir, o que complexidade à bebida, que pode ser produzida de diversas maneiras distintas. Mas sempre será camponesa, sempre será resultado de um processo de transformação de frutose em álcool e gás carbônico. Tratar o vinho com esnobismo é contra a sua própria natureza, e assim se torna um tanto enfadonho o esforço que muita gente do meio faz para enobrecer algo tão simples, cotidiano e trivial. Executivos engravatados, comentários rebuscados sobre um certo rótulo e muita afetação em eventos de degustação afastam o vinho de sua essência, e assim também afugentam grandes parcelas de possíveis consumidores, aglutinando um monte de gente chata ao redor desse universo tão natural, orgânico e brejeiro. Vinho combina mais com mais sujas de terra e botas barrentas do que com ternos e sapatos engraxados. Fato.
Por isso tudo, há mais de dez anos, eu escolhi visitar o Viñedo de los Vientos quando fui fazer umas reportagens de enoturismo no Uruguai. Conhecia alguns dos vinhos e do projeto de Pablo Fallabrini, o enólogo surfista de Atlântida, perto de Montevidéu, que faz um trabalho tão autêntico quanto bem sucedido, produzindo vinhos tão originais e irreverentes quanto elegantes e bem definidos.
Seus novos rótulos eu gosto cada vez mais. Provei um branco com infusão de Skank, que de modo idiota é proibido neste Brasil arcaico, que é sensacional, muito expressivo e aromático, muito gastronômico e prazeroso também para ser bebido só, despretensiosamente, numa roda de amigos, com ou sem baseado rolando, ou alguma comida. É vinho de prazer e alegria. De descontração. Mesmo que a gente enxergue nele excelência enológica.

Pablo: chinelo, boné e descontração – Foto de Bruno Agostini®

Voltando ao dia em que conheci Fallabrino. Eu já vinha de um tempo evitando eventos de vinho pomposos, onde eram exigidos ou sugeridos trajes como passeio completo. Eu, hein… vamos falar de vinho, para que sapato de couro, terno e gravata?!?!?! Já evitava há dez anos, e ainda mais agora.
Pois, sim: tive a certeza de que escolhi uma bodega correta para os meus propósitos quando ele me recebeu na porta da vinícola, com um cachorro do lado, e usando chinelo, bermuda e boné.

Sempre que posso, provo seus vinhos. Inclusive, eles apresentam bons preços, totalmente pagáveis. Custa R$ 157 no site da importadora, a Europa, neste link aqui. Este ano bebi uma garrafa na Churrascaria Palace, em janeiro

E, há uma semana eu novamente abri uma dessas garrafas, no Sult, quando visitei a casa para ver de perto o trabalho da chef Julia Coutinho, que ficou por seis anos no Cipriani, o estrelado restaurante do Copacabana Palace, e agora comanda a cozinha do Sult, em Botafogo.

Ela não estava no dia, então fui “obrigado” a voltar dias depois – em breve eu conto mais – para provar suas massas e doces, duas de suas especialidades. Aproveitei a visita relâmpago num almoço de sábado para provar uma das novidades no menu da casa, o vacío de wagyu uruguaio, servido com certeiro risoto de ervilha com hortelã, excelente combinação. Se tínhamos um uruguaio no prato, eu dividia a mesa com outro oriental, Juan Manuel Prada, que sugeriu o vinho, mais um compatriota, o que faz completo sentido. Era o Anarkia Tannat 2020, uma escolha sempre bem-vinda, mas ainda mais com uma bela carne  â mesa, como foi o caso da Palace, e como de novo aconteceu no Sult naquele sábado muy aprazível.

 

Vacío de wagyu uruguai com risoto verde, com ervilha e ervas: novidade no Sult – Foto de Bruno Agostini®

Mais uma vez o vinho mostrou que é raçudo, mas cheio de classe e categoria, uma espécie de Arrascaeta engarrafado. Elegância é uma boa definição, e eficiência também, porque à mesa tem porte de craque mesmo, e se porta muito bem com carnes, de uma maneira geral. Um vinho que nasceu para um bom churrasco, ou assado, como diriam os vizinhos em suas parrillas.

Feito com mínima intervenção, fermenta com leveduras indígenas, e alcança incríveis 14% mesmo assim. Tem boa acidez, marcante, que lhe dá muita presença em boa, e mostra taninos mais macios do que é comum com esta casta – muito mais amáveis, delicados!

Sem uso de madeira ou sulfito, o vinho esbanja frutos negros, como amoras frescas e ameixas secas, além de especiarias e um toque de chocolate amargo, o que é surpreendente, por não ter passagem em carvalho. É um vinho perfumado. Também tem agradáveis notas de ervas, e tons florais, de rosa vermelha, mostrando ser também ser muito delicado, com traços minerais, de grafite, pedra molhada e uma ligeira salinidade. Me parece um vinho terroso, com cogumelos, humus e coisas do tipo, essa família de aromas de bosques úmidos, que me lembrou um Cabernet Franc, eprovavelmente seria minha aposta se fosse uma prova às cegas.

– Como todos os meus vinhos, o Anarkia se constrói desde o vinhedo. Sentir, viver e amar o meu vinhedo me permite alcançar a máxima expressão deste vinho, elaborado da forma mais pura! menos é mais – escreveu o chef, quando fazia a prova de barrica, ainda no meio de 2020 .

É bem por aí, um Tannat delicioso, e diferente de todos, com a assinatura do surfista Fallabrino, seguramente um dos nomes que mais admiro na enologia sul-americana.

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *